Entrevista com o Psicoterapeuta Ivan Roberto Capelatto
Quando um pai ou uma mãe se torna “amiguinho” dos filhos, o pai morre; a mãe morre, e esse fato vai gerar a perda da referência sexual, a perda do sentir-se desejado por quem o gerou e a dificuldade de criar auto-estima. A afirmação do psicoterapeuta de crianças, adolescentes e famílias, o psicoterapeuta Ivan Roberto Capelatto resume um quadro complexo nas relações entre pais e filhos atualmente.
Crianças estão mais deprimidas do que nunca e perdidos em um emaranhado de necessidades e desejos preenchidos pela televisão, internet, videogames. Em um mundo de crianças tratadas como adultos e adultos infantilizados, pouco espaço tem sobrado para o afeto verdadeiro e asséptico. Capelatto propõe uma busca pela afetividade, o toque e exorta os pais a assumirem sua condição de “cuidadores” de seus filhos como solução para muitos dos problemas que tornam a criança de hoje, sobretudo as das classes mais abastadas materialmente, uma criança infeliz. Confira a íntegra da entrevista.
O que é a criança hoje?
É uma criança solitária, seqüestrada por um monte de fatores, sem uma identidade própria de criança. Hoje as crianças são convidadas a ter umdesenvolvimento intelectual muito precoce, rápido e elas não tem o desenvolvimento emocional tão rápido assim. O que se tem é um diferencial muito grande entre o intelecto e o emocional. Hoje temos crianças e adolescentes superinteligentes, extremamente desenvolvidos, mexendo em celulares, em computadores e, sem resistência alguma à frustração, correndo riscos de em uma primeira frustração se machucar. Hoje o índice de suicídio no Brasil é muito alto, temos uma média de 45 suicídios entre jovens de 9 a 25 anos por dia. Então, o que nós temos. Estimulamos nossos filhos, nossos alunos a entrarem em um desenvolvimento intelectual, social, a questão da tecnologia, a questão da roupa, da marca, o consumo e, emocionalmente não evoluem nada. Eles não tem onde evoluir, e isso passa párea a vida adulta tranqüilamente. Ou se tornam maus chefes, maus profissionais, maus pais, maus parceiros.
Tornam-se adultos inseguros?
Não diria inseguro. É algo narcísico. Ele fica tão voltado para ele mesmo que não consegue repartir. Não consegue repartir seu corpo direito, seussentimentos.
A falta da figura do outro, o sentimento de alteridade vai sendo deixado de lado. As pessoas vão sendo vistas como coisas, objetos? Coisificação das pessoas?
Isso mesmo. Coisifica as pessoas. Não há ligação nenhuma. Há um sentimento de indiferença muito grande, inclusive entre pessoas de mesmo grupo. Se o grupo resolve sair, por exemplo, e um deles está doente, este vai ficar. Ninguém se incomoda do doente ter aquela participação no prazer. Hoje não existe mais o vínculo da amizade, existe a parceria do prazer. Os jovens são parceiros de prazer, o que une é apenas o interesse. Quem não for não vai mesmo, e ninguém vai se preocupar com aquele que não foi. Então, hoje não há o desenvolvimento da afetividade como um valor. Existe o desenvolvimento do interesse e o interesse é o prazer. Acontece que todo que é afetivo passa por tolice, aquele que é afetivo é visto como tolo.
O bulling, a agressão, a segregação ao NERD, ao diferente, aquele que estuda. O efeito naquele jovem, naquela que sofre esse tipo de preconceito é devastador?
O bulling é uma das principais causas de suicídio. É aquela agressão gratuita, sádica, sarcástica e representa muito do medo que o adolescente tem daquilo. O Nerd, o estudioso que ele não consegue ser, ele agride. O homossexual, que também está dentro dele, ele agride para agredir a homossexualidade que está dentro dele. O gordo, que é uma coisa que pode vir a ser, o feio. Nós somos hoje uma sociedade puramente hedonista, uma sociedade ligada ao prazer, narcísica. Então, aquele que representa a antítese disso, aquele que não é belo, que não é forte, não é rico, acaba rechaçado, agredido. A cultura do bulling é uma cultura perversa que virou humor. Então, o bulling acaba sendo tema de filmes, os programas humorísticos são puro bulling. As piadas, a internet. Há sites, específicos sobre isso. A própria diferença de escolha de time de futebol virou um bulling, não uma simples diferença. A roupa, a moda.
Cada vez mais estamos associados aos símbolos ligados ao consumo e a cultura corporativa.
Em vez de se ter auto-estima, você se associa a uma auto-estima simbólica. O time, o grupo a empresa. A estima está lá, não aqui.
Como psicólogo clínico, o senhor atende crianças de classes mais altas. E a criança pobre? Muitos desses problemas e aflições se aplicam também às crianças das classes mais baixas?
Eu tenho dois trabalhos aqui em Campinas, no Jardim Santa Cândida, com crianças de famílias de muito baixa renda. Faço isso nos finais de semana. São mais fáceis de serem trabalhadas porque ela não está tão vinculada à mídia, por isso a mídia não a atinge. Ela tem uma família mais presente, ela tem os vizinhos que cuidam, por incrível que pareça. Ela tem menos necessidades que as crianças das classes mais altas e por isso sofre menos. Como ela não tem que aprender informática, inglês, espanhol, o vestibular ninguém cobra dela. Às vezes o máximo que se cobra é que arrume um emprego no futuro. Então é uma criança que brinca, e que não vai sofrer os efeitos nocivos da virtualidade, não vai pensar em violência de forma alguma, o bulling existe muito pouco nas classes mais baixas, os movimentos de cooperação são muito grandes. Na favela onde eu trabalho, os atendimentos que eu faço são no sentido, assim, de ajudar o pai alcoolista, um irmão viciado em drogas e coordenar essa união e essa cooperação entre eles.
As crianças mais pobres são mais “normais”?
São mais normais, sim. Apesar de muitas delas terem uma refeição por dia, às vezes terem que lavar a roupa e dormir pelados esperando a roupa secar, porque no dia seguinte será a única roupa para vestir. É um fenômeno muito diferente daquilo que se imagina. A miséria é monstruosa, é avassaladora, mas quando eu falo com meus alunos sobre isso, fica todo mundo espantado. Para muitos não ter um dinheiro para comprar um tênis é uma coisa horrível e tal. O que temos visto hoje é que a miséria não é a mãe da violência. Tenho defendido muito essa tese. A mãe ou o pai da violência é o medo. É o medo de não pertencer ao grupo, da rejeição, e na classe baixa isso não existe. Então o fato de você terminar aquela casinha, você…agora gente está com uma escola da prefeitura lá, uma EMEI, e aquilo é prazer o tempo todo para as crianças. Se vem uma oferta, uma doação, aquilo é recebido como uma coisa inesperada, então o prazer é imenso.
A criança, classe C, B ou A fica cheia de desejos e ela tem que ter tênis, o nike shox e esses desejos vão aumentando, aumentando e a classe “Z” ela é muito pouco atingida pela mídia, embora tenha acesso à televisão, ela não cria compulsões a partir da TV. Ela não cria desejos, não cria compulsões a partir da TV. Não há sentimentos complicados.
E a outra referencia de mundo?
É outra referência de mundo. Então o que eu tenho visto, tratado crianças que ficam na creche enquanto a mãe vai trabalhar de doméstica. As necessidades, os traumas, na criança de condomínio fechado, já temos a depressão. Ela não sabe, ela tem um quarto cheio de brinquedos e não sabe com o quê ela vai brincar.
Está frustrada?
Sim, e entrando em depressão. Como é essa criança, esse adolescente na falta do contato com a natureza e as casas cada vez mais dentro dos condomínios, dentro dos muros sem contato com o mundo exterior, com seus computadores e videogames.
Elas começam a viver a virtualidade, sem realidade. O virtual traz a ausência de juízo crítico. Não há lugar para a crítica. Sai de casa, sempre dentro do carro, vai a escola e encontra seus iguais, com mesmo tipo de sociedade. Quando voltam para casa, o que têm é um computador, uma TV no quarto, almoçam no quarto sozinhas e o que eu tenho falado muito sobre o perigo do virtual. O virtual mata o real. E aí ela não tem mais noção de morte, de ausência, noção de si mesma, noção de corpo, não estabelece mais limites. Fica anestesiada e quando chega à adolescência está sem o pensamento crítico, político, econômico, sentimentos de alteridade, o outro ou é um inimigo ou um estorvo na vida dela. Aqui fora as pessoas…É como se fossem dois mundos, o mundo dela e esta “coisa” que está aqui fora atrapalhando a vida dela. Terrível isso.
E a ausência das mães? Até que ponto a ausência daquela mãe que trabalha, fica fora o dia inteiro, prejudica o desenvolvimento da criança?
Tanto prejudica que você vê nos países de primeiro mundo, na Alemanha por exemplo, já existe uma lei há muitos anos de que a mãe assim que ela dá a luz, fica dois anos de licença, ganhando 70% do salário e proibida de trabalhar. Na França a licença é de um ano e seis meses. E aqui no Brasil estamos tentando ver se fica seis meses. Mas, a presença da mãe no primeiro ano de vida da criança é muito importante, fundamental. Temos escritos sobre isso. O que a gente fez foi terceirizar a criança. No primeiro ano de vida, quando a criança é cuidada por diversas pessoas diferentes ela não faz vínculo afetivo com ninguém. Esse prejuízo vamos ver mais tarde, na adolescência. Por isso os países mais desenvolvidos fizeram leis rígidas para que as mães fiquem com os filhos. Então aconteceu que muitas dessas mães pararam de ter filhos, para não terem que parar de trabalhar. No Brasil isso está começando a acontecer.
Terceirizamos os filhos para pessoas mais pobres que deixam seus filhos não sabemos com quem para cuidarem dos filhos dos outros. Aí muitas delas sentem culpa e começam a agredir as crianças que elas cuidam. Colocamos câmeras para vigia-las. Outra possibilidade também é coloca-las o dia todo na escola, o que é um pouco melhor. Terceirizamos os filhos e no final de semana estamos cansados para cuidar deles, então vamos passear com eles no shopping e dar presentes para compensar essa culpa. Isso não é educação, isso não é cuidado. A gente fez um transtorno na relação mãe e filho, pai e filho. E esse transtorno tem um preço grande aí fora que são os desvios de personalidade, os abusos de álcool e drogas, esquizofrenias que voltaram, as psicoses que voltaram.
E o alcoolismo?
Está começando cada vez mais cedo.
Sendo realista, o que fazer para solucionar todos esse problemas? Para amenizar isso e criarmos bons filhos. Qual o caminho?
Os pais, ou melhor, os que querem ser pais precisam buscar informações sobre o que um filho necessita. Assim como fazemos cursos para ser médico, dentista, professor, precisa fazer curso para ser pai. Porque uma criança precisa de muita coisa dos pais, muita coisa mesmo. Hoje mais do que nunca, esse seqüestro que a mídia faz, a virtualização, que é o grande perigo do nosso século, o computador os jogos.
Por que os jogos em especial?
Os jogos são um meio de prazer. Infinito, infinito. E quando você entra no jogo você vai, vai, vai e isso gera um vício. Tanto que nós temos na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) grupos de atendimento a viciados em jogos de computador. Isso, como a droga, tira o jovem da realidade. Faz com que ele não use o córtex pré-frontal, que é a área do nosso cérebro que faz com que a gente tenha crítica e a relação com a realidade. Nós já temos muitas crianças sem usar a realidade, sem usar o córtex. Desse modo, criança precisa brincar. Se não tiver tanto espaço assim não tem importância. A criança precisa de alguém para brincar com ela, precisa comer direito, de lápis e papel, de um parceiro para fazer lição de casa, perguntar. A internet é boa, mas precisa de alguém real que conte história. O vídeo não conta história. A criança precisa de alguém que responda perguntas para ela, ainda que erradas, não precisa acertar sempre.
A mídia tem mostrado muitos casos de abuso infantil, pedofilia. O abuso infantil tornou-se um sintoma do nosso tempo?
A pedofilia é histórica, mas hoje ela se tornou esporte. É sim um sintoma do nosso tempo. E lembrar que toda criança abusada vai se tornar necessariamente um abusador, então ela precisa ser tratada. O que a gente faz é prender o abusador e não tratar a criança que foi abusada.
Em sua opinião, um pedófilo precisa mais de tratamento que prisão?
Sim, porque ele é a conseqüência de um abuso. Todo abusador, todo pedófilo foi uma criança que sofreu abuso. Isso, é claro, não justifica de o que ele está fazendo inteiramente. Mas, um dia ele vai ser solto da cadeia e vai continuar a fazer as mesmas coisas. É uma espécie de saga, é um trauma, do mesmo modo que um serial killer que vai matar enquanto estiver vivo.
Até que ponto a erotização infantil contribui para alimentar a doença do pedófilo?
Contribui muito. Ela acende a doença do pedófilo. Lembro-me de alguns programas da TV à tarde que colocam menininhos e menininhas dançando eroticamente. E vestem as crianças como se fossem pequenos adultos. Isso é um crime. Não se pode fazer isso. Ou ainda se põe as meninas de cinco, seis anos para desfilar.
Dar menos compromisso à criança também ajuda na sua felicidade?
Criança precisa brincar. Ter um lápis na mão, areia, natureza. Videogame não é presente para criança, nem computador. Nem precisa aprender inglês, espanhol. Deixa isso para um pouco mais tarde. Um lápis um papel resolve muito.
E a rivalização entre pais e filhos. Em que medida, de que modo se dá essa competição entre pais e filhos?
O que precisamos pensar é que hoje as gerações pós anos 80 são gerações onde a adolescência não termina. São gerações que não admitem a velhice. Então você tem hoje a mãe que às vezes tem o corpo mais bonito que o da filha. Ou o pai que anda de motocicleta, paquerando as amigas do filho. São pessoas que fazem o culto à estética, ao prazer. Na televisão vemos esse monte de produtos contra rugas, contra isso contra aquilo. O medo da velhice tomou conta das pessoas de uma maneira terrível. E aí nós temos muitos casos de tentativa de suicídio entre meninas cujos manequins das mães são menores que os das filhas. A mãe usa 36, 38 e o dela é 42. E ela está em crescimento, engorda por causa dos hormônios e a mãe passa mais tempo na academia. É algo muito complicado. Após os anos 80, temos as gerações da estética. Há uma competição muito grande entre pais e filhos. Em casa, muitos se tratam pelo nome, não se tratam mais de pai e mãe. E eles competem, pelo uso do computador, quem é mais bonito, mãe e filha usam as mesmas roupas.
Sobra pouco lugar para o amor?
É a morte do afeto. Estamos vivendo, assim, a era do vazio, como diz o Lipowetsky (Gilles Lipowetsky, filósofo francês). Charles Mellman, um psicanalista francês, também diz isso. Esvaziamos toda condição afetiva, porque imaginamos que ser afetivo é ser tolo, é sofrer. E é mesmo, mas é a única condição humana, não tem outra.
Por conta desse vazio afetivo, o mercado de consumo identifica isso e se apropria da nossa subjetividade?
Exatamente. E as pessoas acabam por virar travestis de si mesmas. Ficam travestidos de um determinado tipo de roupa, um tipo de corpo. Hoje os seios são artificiais. Não há mais originalidade, não existe mais um eu. Você vira o outro, uma coisa, um objeto. A vida ficou coisificada e não se tem mais uma personalidade. Você é aquilo que veste, aquilo que se traveste. Entre os jovens você é o que você veste, a turma que pertence. E aquele que ainda mantém alguma originalidade, que estuda, tem planos para o futuro, esse está perdido nesse meio. É vítima do bulling. Então, ou ele adoece ou tem uma família muito boa para sustentar isso.
Alguma mensagem para os pais?
Gostaria de deixar uma última mensagem para os pais. Que eles pensem muito, porque os filhos precisam muito deles. Separados ou não, com outras famílias ou não. Outra coisa é que a raiva, quando o pai ou a mãe dizem não para um filho, ela é sempre filha do medo. Que os pais nunca levem em conta o que um filho diz quando está com raiva. Que nunca é verdade o que sai da boca de um filho quando ele está com raiva. A raiva é um sentimento oriundo do medo. E que os pais suportem um pouco isso. Quem tiver que dizer não para um filho de três, treze ou trinta anos que diga e suporte a raiva que vem disso. Essa raiva é benigna em muitos sentidos. Quando um indivíduo começa a suportar a frustração, ele escapa dessa maldição que a gente vive hoje, que é ficar sequestrado pelas coisas de fora. É única esperança que temos de reconstruir algumas coisas.