terça-feira, 16 de dezembro de 2014

No Fórum das Águas, sugestões para se lidar com esse recurso em tempo de escassez


Tudo corria muito bem naquela região onde a água jorrava das torneiras, dos chuveiros, e permitia até que indústrias e cidadãos comuns tivessem com ela uma relação de desrespeito. Usava-se água para tudo, até para diluir esgoto, lavar minério, calçadas e carros. Os banhos demoravam muito tempo e ninguém se preocupava em fechar a torneira enquanto ensaboava os pratos. Ligava-se a máquina de lavar roupas quase diariamente naquela terra da abundância.

Até que alguém começou a perceber que os rios não estavam mais tão caudalosos e que as chuvas caíam em menor quantidade do que de costume. O alerta vermelho se acendeu quando veio um longo período de estiagem. E a terra da abundância precisou mudar tudo. Hábitos, governança... Começara o tempo da escassez.

Não estou contando uma história de ficção, como vocês já devem ter descoberto. Essa região existe e se chama Região Sudeste do Brasil. Quem podia imaginar que a terra da fartura e da abundância de água, um dia iria ter que lidar com a falta ou o medo da falta desse bem tão precioso para todos nós? É o que está acontecendo. E não é só em São Paulo, com o Sistema Cantareira. Na verdade, o fenômeno que está preocupando os paulistas serviu para que os mineiros abrissem os olhos: se está acontecendo ali tão perto, o problema pode se espalhar. É melhor, então, se precaver, adotar uma política para a escassez.

Foi esse o tom do Fórum das Águas que está terminando hoje em Inhotim, a poucos quilômetros da cidade mineira de Brumadinho, para a qual fui convidada a assistir. A iniciativa é do Consórcio Intermunicipal da Bacia Hidrográfica do Rio Paraopeba e do Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam) e a ideia foi criar ali um espaço para troca de informações. Representantes de indústrias, acadêmicos, cidadãos organizados em associações, todos bem aparelhados com dados e sugestões.

E a cada palestra, a sensação que ficava na plateia era de que realmente estamos vivendo um tempo novo, quando é preciso discutir detalhes e lembrar de nuances que nunca foram alvo de preocupação. Um professor veio do Ceará, terra historicamente vítima da seca, para dar sua contribuição calcada na vasta experiência que ganhou ao lidar com o problema. Roberto Bruno Moreira Rebouças, da Universidade Estadual do Ceará, é geógrafo, atualmente trabalha na Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos, e apresentou números que causam desconforto aos mais sensíveis: em 2009 os cearenses tinham 81% de armazenamento de água e essa porcentagem caiu para atuais 27,91%.

“Se não fosse a transferência do Rio Jaguaribe, o rio que já recebeu o triste atributo de ser o ‘mais seco do mundo’, a região metropolitana do Estado já estaria em colapso”, contou ele, dando uma boa dica. Outra tecnologia que deu certo foi a instalação de adutoras de montagem rápida, que os cearenses apelidaram de “tecnologia de guerra” porque foram montadas com tubos doados após a Guerra do Iraque. Não deixa de ser...

Mas não existe uma única solução e, acima de tudo, garantiu o professor Rebouças, é preciso trazer para o processo decisório a participação dos usuários da água (empresas e cidadãos comuns). “Se não fizer isso, não vai ter sucesso”.

Essa preocupação já está em lei. O Plano Nacional de Recursos Hídricos, estabelecido pela Lei 9.433/97 e aprovado pelo Conselho Nacional de Recursos Hídricos em janeiro de 2006, prevê a criação de Comitês de Bacia para decidirem sobre quando, quanto e para quê cobrar pelo uso da água (veja aqui). Os Comitês de Bacia, no entanto, não funcionam como deveriam, na opinião do ex-ministro do Meio Ambiente e engenheiro florestal José Carlos Carvalho (foto ao lado). Em entrevista na hora do café, Carvalho disse aos jornalistas que se os comitês estivessem funcionando, essas pessoas, e não os governantes, é que deveriam ter decidido o pacto de uso do Rio Paraíba do Sul (veja aqui).

“O Brasil conseguiu construir uma lei de gestão das águas extremamente avançada. O problema brasileiro é que normalmente nossas leis terminam no enunciado. Se tivesse um Comitê de Bacia funcionando, essa tarefa seria dele. Porque quando começa a escassez, surge também a necessidade de uma coisa que é o papel-chave do Comitê: alocação de água. Mas acho que daqui para a frente, por conta da escassez, os comitês vão ter que exercer o papel que não vinham exercendo”, disse o ex-ministro.

Carvalho traçou uma linha histórica e lembrou que até a lei de 1997, água no Brasil era ligada à energia e o assunto era da alçada do Departamento Nacional de Água e Energia (Dnae). A legislação criada no fim do século, no entanto, é bem clara: o uso da água para o abastecimento público é prioritário.

“As mudanças climáticas estão alterando o ciclo biológico, e nesse desdobramento vem a escassez. Mas o Brasil não está se preparando, é preciso fazer mitigação e adaptação. Nós só não tivemos apagão até agora porque o país está crescendo menos”, disse Carvalho, expondo um dos paradoxos mais contundentes de nossos tempos. O crescimento irresponsável, pouco atento à necessidade de se levar em conta investimento em inovações que adaptem os processos industriais à finitude dos recursos naturais, pode ser solução apenas para quem ainda está ligado ao business as usual.

Hora de pensar muito, por exemplo, se as hidrelétricas a fio d'água, aquelas que não dispõem de imensos reservatórios, são mesmo a melhor opção. Quem levantou a questão foi Marcelo de Deus, gerente da Cemig, que apresentou um painel sobre a visão e a experiência do setor elétrico no período de estiagem. Sem os reservatórios, afirmou ele, o jeito é usar as termoelétricas, muito mais poluidoras. E quanto mais poluição de gases do efeito estufa, como sabemos, mais mudanças climáticas (traduzidas sob a forma de secas, tempestades, furacões etc).

“Setenta e quatro por cento da matriz de produção do sistema elétrico brasileiro são hídricos e as termoelétricas equivalem a 18%. Nos próximos cinco anos vamos crescer mais em hidrelétricas, mas as fontes estão se diversificando também, entre eólica, biomassa, solar. Só que se a economia reagir vamos ter que explorar mais os reservatórios e estressar o sistema. Este ano, o período da chuva foi pior do que o pior já registrado, em 1971”, disse ele.

A proposta do executivo é aumentar a curva de segurança para operar os reservatórios no momento de crise, mas ele mesmo admite que essa não é uma decisão de um só. De novo: é hora de dar força para os comitês de bacia. Presidente do Consórcio Intermunicipal da Bacia do Rio Paraopeba (Cibapar) e vice-prefeito de Brumadinho, Breno Carone foi um dos organizadores do Fórum e recebeu os jornalistas em sua casa para uma conversa antes do evento. Jovem pai de duas crianças, contou-nos que levou os filhos para uma barqueata no Rio Paraopeba com o objetivo de plantar mudas pelo menos em parte de suas margens para conscientizar a população de que é preciso ajudar a cuidar.

Enquanto ele contava essa história, o filho prestava atenção. Pensei que o maior proveito da barqueata quem teve foi aquele menino, assim como as crianças que moram à beira do Paraopeba. Diferente de nós, adultos, que vivemos em tempos de abundância, essa nova geração cresce acostumada à escassez. E vai conseguir usar sua criatividade, dom que pertence aos humanos, para conviver com isso. É no que acredito, e é de onde tiro a certeza de que esses fóruns, conferências, seminários, enfim, encontros para debater sobre as mudanças climáticas, são muito profícuos.

http://g1.globo.com/natureza/blog/nova-etica-social/post/no-forum-das-aguas-sugestoes-para-se-lidar-com-esse-recurso-em-tempo-de-escassez.html

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