domingo, 20 de setembro de 2015

Guia Politicamente Incorreto da Historia do Brasil - Leandro Narloch


Editora: LEYA São Paulo, 2009 Revisão textual realizada por Rosângela Viana

É hora de jogar tomates na historiografia politicamente correta.

Este guia reúne histórias que vão diretamente contra ela. Só erros das vítimas e dos heróis da bondade, só virtudes dos considerados vilões. Alguém poderá dizer que se trata do mesmo esforço dos historiadores militantes, só que na direção oposta. É verdade. Quer dizer, mais ou menos.

Este livro não quer ser um falso estudo acadêmico, como o daqueles estudiosos, e sim uma provocação. Uma pequena coletânea de pesquisas históricas sérias, irritantes e desagradáveis, escolhidas com o objetivo de enfurecer um bom número de cidadãos.

Existe um esquema tão repetido para contar a história de alguns países que basta misturar chavões, mudar datas, nomes de nações colonizadas, potências opressoras, e pronto. Você já pode passar em qualquer prova de história na escola e, na mesa do bar, dar uma de especialista em todas as nações da América do Sul, África e Ásia. As pessoas certamente concordarão com suas opiniões, os professores vão adorar as respostas.

O modelo é simples e rápido, mas também chato e quase sempre errado. Até mesmo as novelas de TV têm roteiros mais criativos. Os ricos só ganham o papel de vilões se fazem alguma bondade, é porque foram movidos por interesses. Já os pobres são eternamente ”do bem”, vítimas da elite e das grandes potências, e só fazem besteira porque são obrigados a isso. Nessa estrutura simplista, o único aspecto que importa é o econômico: o passado vira um jogo de interesses e apenas isso. Só se contam histórias que não ferem o pensamento politicamente correto e não correm o risco de serem mal interpretadas por pequenos incapacitados nas escolas. O gênero também tem tabus e personagens proibidos, como o rei bom, o fraco opressor ou os povos que largaram a miséria por mérito próprio e hoje não se consideram vítimas.

No século 20, quando esse esquema se tornou comum, acreditávamos num mundo dividido entre preto e branco, fortes e fracos, ganhadores e perdedores. Essa visão já estava pronta quando estudiosos se debruçavam sobre a história: o que eles faziam era encaixar, à força, os eventos do passado em sua visão de mundo. Isso mudou. Uma nova historiografia ganha força no Brasil. Se no começo da década de 1990 o jornalista Paulo Francis falava de ”rinocerontes à la Ionesco que passam por historiadores em nosso país”, na última década apareceram acadêmicos alertas de que não são políticos a escrever manifestos. Eles tentam elaborar conclusões científicas baseadas em arquivos inexplorados de cartórios, igrejas ou tribunais, têm mais cuidado ao falar de conseqüências de uma lógica financeira e pesquisam sem se importar tanto com o uso ideológico de suas conclusões. As interpretações que tiram do armário são mais complexas e, numa boa parte das vezes, saborosamente desagradáveis para os que adotam o papel de vítimas ou bons mocinhos.

A história fica assim muito mais interessante. No século 18, quem quisesse ir de Parati, no Rio de Janeiro, à atual Ouro Preto, em Minas Gerais, tinha que cavalgar por dois meses — no caminho, passava por casebres miseráveis onde moravam tanto escravos quanto seus senhores, que trabalhavam juntos e comiam, sem talheres, na mesma mesa. Sabe-se hoje que, nas vilas do ouro de Minas, havia ex-escravas riquíssimas, donas de casas, jóias, porcelanas, escravos, e bem relacionadas com outros empresários. Os primeiros sambistas, considerados hoje pioneiros da cultura popular, tinham formação em música clássica, plagiavam canções estrangeiras e largaram o samba para montar bandas de jazz. Uma das conseqüências da chegada dos jesuítas a São Paulo foi dar um alívio à mata atlântica — até então, os índios botavam fogo na floresta não só para abrir espaço de cultivo, mas para cercar os animais com o fogo e depois abatê-los.

O problema é que essa nova história demora a chegar às pessoas em geral. Os livros didáticos continuam dizendo que o verdadeiro nome de Zumbi era Francisco e que ele teve educação católica - uma ficção criada pelo político e jornalista gaúcho Décio Freitas. Ainda se aprende na escola que o Brasil praticou um genocídio no Paraguai durante uma guerra que teria sido criada pela Inglaterra. E tem muito descendente de europeu achando que é culpado pelo tráfico de escravos, apesar de a maioria de seus ancestrais ter imigrado quando a escravidão se extinguia.

No processo de fabricação de um espírito nacional, é normal que se inventem tradições, heróis, mitos fundadores e histórias de chorar, que se jogue um brilho a mais em episódios que criam um passado em comum para todos os habitantes e provocam uma sensação de pertencimento. Se este país quer deixar de ser café com leite, um bom jeito de amadurecer é admitir que alguns dos heróis da nação eram picaretas ou pelo menos pessoas do seu tempo. E que a história nem sempre é uma fábula: não tem uma moral edificante no final e nem causas, conseqüências, vilões e vítimas facilmente reconhecíveis.

Por isso é hora de jogar tomates na historiografia politicamente correta. Este guia reúne histórias que vão diretamente contra ela. Só erros das vítimas e dos heróis da bondade, só virtudes dos considerados vilões. Alguém poderá dizer que se trata do mesmo esforço dos historiadores militantes, só que na direção oposta. É verdade. Quer dizer, mais ou menos. Este livro não quer ser um falso estudo acadêmico, como o daqueles estudiosos, e sim uma provocação. Uma pequena coletânea de pesquisas históricas sérias, irritantes e desagradáveis, escolhidas com o objetivo de enfurecer um bom número de cidadãos.

Em 1646,os jesuítas que tentavam evangelizar os índios no Rio de

Janeiro tinham um problema. As aldeias onde moravam com os nativos ficavam perto de engenhos que produziam vinhos e aguardente. Bêbados, os índios tiravam o sono dos padres. Numa carta de 25 de julho daquele ano, Francisco Carneiro, o reitor do colégio jesuíta, reclamou que o álcool provocava ”ofensas a Deus, adultérios, doenças, brigas, ferimentos, mortes” e ainda fazia o pessoal faltar às missas. Para acabar com a indisciplina, os missionários decidiram mudar três aldeias para um lugar mais longe, de modo que não ficasse tão fácil passar ali no engenho e tomar umas. Não deu certo. Foi só os índios e os colonos ficarem sabendo da decisão para se revoltarem juntos. Botaram fogo nas choupanas dos padres, que imediatamente desistiram da mudança.

Os anos passaram e o problema continuou. Mais de um século depois, em 1755, o novo reitor se dizia contrariado com os índios por causa do ”gosto que neles reina de viver entre os brancos”. Era comum fugirem para as vilas e os engenhos, onde não precisavam obedecer a tantas regras. O reitor escreveu a um colega dizendo que eles ”se recolhem nas casas dos brancos a título de os servir; mas verdadeiramente para viver a sua vontade e sem coação darem-se mais livremente aos seus costumados vícios”. O contrário também acontecia. Nas primeiras décadas do Brasil, tantos portugueses iam fazer festa nas aldeias que os representantes do reino português ficaram preocupados. Enquanto tentavam fazer os índios viver como cristãos, viam os cristãos vestidos como índios, com várias mulheres e participando de festas no meio das tribos. Foi preciso editar leis para conter a convivência nas aldeias. Em 1583, por exemplo, o conselho municipal de São Paulo proibiu os colonos de participar de festas dos índios e ”beber e dançar segundo seu costume”.

Os historiadores já fizeram retratos bem diversos dos índios brasileiros. Nos primeiros relatos, os nativos eram seres incivilizados, quase animais que precisaram ser domesticados ou derrotados. Uma visão oposta se propagou no século 19, com o indianismo romântico, que retratou os nativos como bons selvagens donos de uma moral intangível. Parte dessa visão continuou no século 20. Historiadores como Florestan Fernandes, que em 1952 escreveu A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá, montaram relatos onde a cultura indígena original e pura teria sido destruída pelos gananciosos e cruéis conquistadores europeus. Os índios que ficaram para essa história foram os bravos e corajosos que lutaram contra os portugueses. Quando eram derrotados e entravam para a sociedade colonial, saíam dos livros. Apesar de tentar dar mais valor à cultura indígena, os textos continuaram encarando os índios como coisas, seres passivos que não tiveram outra opção senão lutar contra os portugueses ou se submeter a eles. Surgiu assim o discurso tradicional que até hoje alimenta o conhecimento popular e aulas da escola. Esse discurso nos faz acreditar que os nativos da América viviam em harmonia entre si e em equilíbrio com a natureza até os portugueses chegarem, travarem guerras eternas e destruírem plantas, animais, pessoas e culturas.

Na última década, a história mudou outra vez. Uma nova leva de estudos, que ainda não se popularizou, toma a cultura indígena não como um valor cristalizado. Sem negar as caçadas que os índios sofreram, os pesquisadores mostraram que eles não foram só vítimas indefesas. A colonização foi marcada também por escolhas e preferências dos índios, que os portugueses, em número muito menor e precisando de segurança para instalar suas colônias, diversas vezes acataram. Muitos índios foram amigos dos brancos, aliados em guerras, vizinhos que se misturaram até virar a população brasileira de hoje. ”Os índios transformaram-se mais do que foram transformados”, afirma a historiadora Maria Regina Celestino de Almeida na tese Os índios Aldeados no Rio de Janeiro Colonial, de 2000. As festas e bebedeiras de índios e brancos mostram que não houve só tragédias e conflitos durante aquele choque das civilizações. Em pleno período colonial, muitos índios deviam achar bem chato viver nas tribos ou nas aldeias dos padres. Queriam mesmo era ficar com os brancos, misturarse a eles e desfrutar das novidades que traziam.

O contato das duas culturas merece um retrato ainda mais distinto, até grandiloquente. Quando europeus e ameríndios se reencontraram, em praias do Caribe e do Nordeste brasileiro, romperam um isolamento das migrações humanas que completava 50 mil anos. É verdade que o impacto não foi leve — tanto tempo de separação provocou epidemias e choques culturais. Mas eles aconteceram para os dois lados e não apagam uma verdade essencial: aquele encontro foi um dos episódios mais extraordinários da história do povoamento do ser humano sobre a Terra, com vantagens e descobertas sensacionais tanto para os europeus quanto para centenas de nações indígenas que viviam na América. Um novo ponto de vista sobre esse episódio surge quando se analisa alguns fatos esquecidos da história de índios e portugueses.

Uma das concepções mais erradas sobre a colonização do Brasil é acreditar que os portugueses fizeram tudo sozinhos. Na verdade, eles precisavam de índios amigos para arranjar comida, entrar no mato à procura de ouro, defender-se de tribos hostis e até mesmo para estabelecer acampamentos na costa.

Descer do navio era o primeiro problema. Os comandantes das naus europeias costumavam escolher bem o lugar onde desembarcar, para não correr o risco de serem atacados por índios nervosos e nuvens de flechas venenosas. Tanto temor se baseava na experiência. Depois de meses de viagem nas caravelas, os navegadores ficavam mal nutridos, doentes, fracos, famintos e vulneráveis. Chegavam a lugares desconhecidos e frequentemente tinham azar: levavam uma surra e precisavam sair às pressas das terras que achavam ter conquistado. Acontecia até de terem que mendigar para arranjar comida, como na primeira viagem de Vasco da Gama à índia, em 1498.

Vasco da Gama ofereceu a corte de Calcutá chapéus, bacias e azeite em troca de pimenta. Os nobres indianos consideraram os produtos ridiculamente primitivos, e só não executaram o navegador porque não viram ameaça no estranho esfarrapado. Sem dinheiro para alimentar a tripulação, Vasco da Gama mandou que seus homens sujos e famintos fossem para as ruas pedir por comida.

O tratamento foi diferente no Brasil, mas nem tanto.

Os portugueses não eram seres onipotentes que faziam o que quisessem nas praias brasileiras. Imagine só. Você viaja para o lugar mais desconhecido do mundo, que só algumas dúzias de pessoas do seu país visitaram. Há sobre o lugar relatos tenebrosos de selvagens guerreiros que falam uma língua estranha, andam nus e devoram seus inimigos — ao chegar, você percebe que isso é verdade. Seu grupo está em vinte ou trinta pessoas; eles, em milhares. Mesmo com espadas e arcabuzes, sua munição é limitada, o carregamento é demorado e não contém os milhares de flechas que eles possuem. Numa condição dessas, é provável que você sentisse medo ou pelo menos que preferisse evitar conflitos. Faria algumas concessões para que aquela multidão de pessoas estranhas não se irritasse.

Para deixar os índios felizes, não bastava aos portugueses entregarlhes espelhos, ferramentas ou roupas. Eles de fato ficaram impressionados com essas coisas (veja mais adiante), mas foi um pouco mais difícil conquistar o apoio indígena. Por mais revolucionários que fossem as roupas e os objetos de ferro europeus, os índios não viam sentido em acumular bens: logo se cansavam de facas, anzóis e machados. Para permanecerem instalados, os recém-chegados tiveram que soprar a brasa dos caciques estabelecendo alianças militares com eles. Dando e recebendo presentes, os índios acreditavam selar acordos de paz e de apoio quando houvesse alguma guerra. E o que sabiam fazer muito bem era se meter em guerras.

O massacre começou muito antes de os portugueses chegarem. As hipóteses arqueológicas mais consolidadas sugerem que os índios da família linguística tupi-guarani, originários da Amazônia, se expandiam lentamente pelo Brasil. Depois de um crescimento populacional na floresta amazônica, teriam enfrentado alguma adversidade ambiental, como uma grande seca, que os empurrou para o Sul. À medida que se expandiram, afugentaram tribos então donas da casa. Por volta da virada do primeiro milênio, enquanto as legiões romanas avançavam pelas planícies da Gália, os tupis-guaranis conquistavam territórios ao sul da Amazônia, exterminando ou expulsando inimigos. Índios caingangues, cariris, caiapós e outros da família linguística jê tiveram que abandonar terras do litoral e migrar para planaltos acima da serra do Mar.

Em 1500, quando os portugueses apareceram na praia, a nação tupi se espalhava de São Paulo ao Nordeste e à Amazônia, dividida em diversas tribos, como os tupiniquins e os tupinambás, que disputavam espaço travando guerras constantes entre si e com índios de outras famílias linguísticas. Não se sabe exatamente quantas pessoas viviam no atual território brasileiro - as estimativas variam muito, de l milhão a 3,5 milhões de pessoas, divididas em mais de duzentas culturas. Ainda demoraria alguns séculos para essas tribos se reconhecerem na identidade única de índios, um conceito criado pelos europeus. Naquela época, um tupinambá achava um botocudo tão estrangeiro quanto um português. Guerreava contra um tupiniquim com o mesmo gosto com que devorava um jesuíta. Entre todos esses povos, a guerra não era só comum - também fazia parte do calendário das tribos, como um ritual que uma hora ou outra tinha de acontecer. Sobretudo os índios tupis eram obcecados pela guerra. Os homens só ganhavam permissão para casar ou ter mais esposas quando capturassem um inimigo dos grandes. Outros grupos acreditavam assumir os poderes e a perspectiva do morto, passando a controlar seu espirito, como uma espécie de bicho de estimação. Entre canibais, como os tupinambás, prisioneiros eram devorados numa festa que reunia toda a tribo e convidados da vizinhança.

A palavra “mingau” vem da pasta feita com as vísceras cozidas do prisioneiro devorado pelos tupinambás.

Com a vinda dos europeus, que também gostavam de uma guerra, esse potencial bélico se multiplicou. Os índios travaram entre si guerras duríssimas na disputa pela aliança com os recém-chegados. Passaram a capturar muito mais inimigos para trocar por mercadorias. Se antes valia mais a qualidade, a posição social do inimigo capturado, a partir da conquista a quantidade de mortes e prisões ganhou importância. Por todo o século 16, quando uma caravela se aproximava da costa, índios de todas as partes vinham correndo com prisioneiros - alguns até do interior, a dezenas de quilômetros. Os portugueses, interessados em escravos, compravam os presos com o pretexto de que, se não fizessem isso, eles seriam mortos ou devorados pelos índios. Em 1605, o padre Jerônimo Rodrigues, quando viajou ao litoral de Santa Catarina, ficou estarrecido com o interesse dos índios em trocar gente, até da própria família, por roupas e ferramentas:

Tanto que chegam os correios ao sertão, de haver navio na barra, logo mandam recado pelas aldeias para virem ao resgate. E para isso trazem a mais desobrigada gente que podem, scilicet, moços e moças órfãs, algumas sobrinhas, e parentes, que não querem estar com eles ou que os não querem servir, não lhe tendo essa obrigação, a outros trazem enganados, dizendo que lhe farão e acontecerão e que levarão muitas coisas [...]. Outro moço vindo aqui onde estávamos, vestido em uma camisa, perguntando-lhe quem lha dera, respondeu que vindo pelo navio dera por ela e por alguma ferramenta um seu irmão, outros venderam as próprias madrastas, que os criaram, e mais estando os pais vivos.

No livro Sete Mitos da Conquista Espanhola, o historiador

Matthew Restall fala do guerreiro invisível que matou os índios do México. Se os espanhóis estavam em um punhado de aventureiros e os astecas, em milhões, como os primeiros podem ter conseguido conquistar o México? É claro que não foi ato de um guerreiro invisível (embora epidemias tenham matado muita gente). Na verdade, os espanhóis não estavam em poucos. ”O que com frequência é ignorado ou esquecido é o fato de que os conquistadores tendiam a ser superados em número também por seus próprios aliados nativos”, afirma Restall. Os espanhóis ficaram de um lado da guerra entre facções astecas - ajudaram os índios e ganharam a ajuda deles. É razoável supor que, se houvesse algum senso de solidariedade étnica no México, a conquista seria muito mais difícil ou talvez impossível.

Pode-se dizer o mesmo sobre o Brasil. O extermínio e a escravidão dos índios não seriam possíveis sem o apoio dos próprios índios, de tribos inimigas. Eles forneceram o suporte militar às bandeiras, os assaltos que os paulistas faziam ao interior para capturar escravos ou destruir nativos hostis. Também dependia deles a guarda das colônias portuguesas. As bandeiras são geralmente apontadas como a maior causa de morte da população indígena depois das epidemias. Em cada uma, havia no mínimo duas vezes mais índios - normalmente dez vezes mais. Sobre a mais mortífera delas, a que o bandeirante Raposo Tavares empreendeu até as aldeias jesuíticas de Guaíra, no extremo oeste paranaense, os relatos apontam para uma bandeira formada por 900 paulistas e 2 mil índios tupis. ”No entanto, nestas versões, o total de paulistas parece exagerado, uma vez que é possível identificar apenas 119 participantes em outras fontes. Além disto, a razão de dois índios por paulista seria muito baixa quando comparada a outras expedições”, escreveu o historiador John Manuel Monteiro no livro Negros da Terra.

Cogita-se até que o modelo militar das bandeiras seja resultado mais da influência indígena que europeia. ”É difícil evitar a impressão, por exemplo, de que as bandeiras representavam uma predileção tupi por aventuras militares”, afirma o historiador Warren Dean.

Essa imersão em um conjunto nativo de valores era de se esperar, dado o quanto eram escassos nessas sociedades militarizadas os capitães e tenentes brancos, o quanto eram tupis seus sargentos mestiços e o quanto as normas de comportamento devem ter sido não europeias nas trilhas e nos campos de batalha das selvas.

Mesmo a distinção entre bandeirantes paulistas e índios é difusa.

Muitos dos chamados ”bandeirantes paulistas” eram mestiços de primeira geração: tinham mãe, tios e primos criados nas aldeias e pareciam mais índios que europeus.

O melhor exemplo é Domingos Jorge Velho, bandeirante paulista que destruiu o Quilombo dos Palmares. Filho de um europeu com uma índia, ele não falava português. Assim como quase todos naquela época, expressava-se na língua geral tupi-guarani.

As tribos não apoiavam os colonos por alguma obediência cega.

Seus líderes, que também participavam das bandeiras e das batalhas, estavam interessados na parceria para derrotar outras tribos. O padre José de Anchieta percebeu isso em 1565. Os tupinambás, tradicionais adversários dos colonos, de repente se mostraram dispostos a deixar de guerrear com os portugueses. O real motivo dessa aliança surpreendente era ”o desejo grande que têm de guerrear com seus inimigos tupis, que até agora foram nossos amigos, e há pouco se levantaram contra nós”, acreditava o padre. Uma frase escrita pela historiadora Maria Regina Celestino de Almeida resume muito bem as guerras indígenas: ”Se os europeus se aproveitaram das dissidências indígenas para fazerem suas guerras de conquista por território, também os índios lançaram mão desse expediente para conseguir seus próprios objetivos”.

Um bom exemplo da participação deliberada de índios no extermínio de índios é a Guerra dos Tamoios, entre 1556 e 1567. Os tupiniquins e os temiminós ajudaram os portugueses a expulsar os franceses do Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo, lutavam contra antigos inimigos: os tupinambás, também chamados de tamoios. Depois de vencerem, os nativos aliados dos portugueses ganharam terras e uma posição privilegiada de colaboradores do reino português. Ficaram responsáveis pela segurança do Rio, na tentativa de evitar ataques à cidade conquistada. Transformaram-se no índio colonial, um personagem esquecido da história brasileira que será lembrado a seguir.

Durante os três primeiros séculos da conquista portuguesa, nenhuma família teve mais poder na vila que deu origem a Niterói, no Rio de Janeiro, quanto os Souza. Em 1644, Brás de Souza reivindicou ao Conselho Ultramarino o cargo de capitão-mor da aldeia de São Lourenço, utilizando como principal argumento o nome de sua família. O pedido foi aceito. Segundo a carta que concedeu a colocação, era preciso lembrar que Brás era ”descendente dos Souza que sempre exercitaram o dito cargo”, por isso tinha direito a ”todas as honras e proeminências que têm e gozaram os mais Capitães e seus antecessores dadas nesta cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro”. Um século e meio depois, em 1796, Manoel Jesus e Souza era capitão-mor. Em uma consulta do Conselho Ultramarino, consta que ele deveria continuar no cargo por causa de ”sua descendência nobre”. Típicos membros da elite colonial esses Souza.

O interessante é que esses nobres senhores não eram descendentes de nenhum poderoso fidalgo português. O homem que criou a dinastia dos Souza de Niterói chamava-se Arariboia. Era o cacique dos índios temiminós, que ajudaram os portugueses a expulsar franceses e tupinambás do Rio de Janeiro. Com a guerra vencida, muitos temiminós e tupiniquins foram batizados e adotaram um sobrenome português. Arariboia virou Martim Afonso de Souza (em homenagem ao primeiro colonizador do Brasil) e ganhou a sesmaria de Niterói, onde alojou sua tribo. Menos de cem anos depois, seus descendentes já não se viam como índios: eram os Souza e faziam parte da sociedade brasileira. Talvez eles se identifiquem assim até hoje.

Muitos historiadores mostram números desoladores sobre o genocídio que os índios sofreram depois da conquista portuguesa. Dizem que a população nativa diminuiu dez, vinte vezes. As tribos passaram mesmo por um esvaziamento, mas não só por causa de doenças e ataques. Costuma-se deixar de fora da conta o índio colonial, aquele que largou a tribo, adotou um nome português e foi compor a conhecida miscigenação brasileira ao lado de brancos, negros e mestiços - e cujos filhos, pouco tempo depois, já não se identificavam como índios.

Não foram poucas vezes, nem só no Rio, que isso aconteceu. Por todo o Brasil, índios foram para as cidades e passaram a trabalhar na construção de pontes, estradas, como marceneiros, carpinteiros, músicos, vendendo chapéus, plantando hortaliças e cortando árvores - e até caçando negros fugitivos. Nas aldeias ao redor de São Paulo, não se sabe de cargos vitalícios como entre os Souza de Niterói, mas há sinais de que os índios aldeados também se integraram. Em 2006, o historiador Mareio Marchioro achou documentos com nome, cargo, idade, profissão e número de filhos dos chefes indígenas na virada do século 18 para o século 19. São todos nomes portugueses, ”todos antecedidos da palavra ’índio’”. Esses nativos da terra devem ter ajudado a tornar comuns alguns sobrenomes brasileiros.

Dos índios de Minas Gerais, descobriram-se documentos do exato momento em que deixavam as aldeias e entraram para a sociedade mineira. Vasculhando documentos mineiros no Arquivo Histórico Ultramarino, os historiadores Maria Leônia Chaves de Resende e Hal Langfur encontraram dezenas de registros da entrada dos índios nas vilas aquecidas com a corrida do ouro do século 18. Perceberam que muitos nativos se mudaram para vilas por iniciativa própria, provavelmente porque se sentiam ameaçados por conflitos com os brancos ou cansados da vida do Paleolítico das aldeias. Chegavam às dezenas, recebiam uma ajuda inicial do governo e iam trabalhar na propriedade de algum colono. Afirmam os dois historiadores:

Para só citar um exemplo, o governador Lobo da Silva conta que, tão logo tomou posse, ”apareceram vinte e tantos índios silvestres chamados Coropós, Gavelhos e Croás”. Em virtude das ordens reais, mandou vestir e dar ferramentas. Passados alguns dias, vieram outros trinta ”no mesmo empenho [de serem batizados], informados do bom acolhimento que se fez aos primeiros”.

Se fossem escravizados pelos fazendeiros, os índios poderiam entrar na justiça e requerer a liberdade. Frequentemente ganhavam. A escravidão indígena tinha sido proibida pelo rei dom Pedro segundo de Portugal em 1680, e vetada novamente, um século depois, pelo marquês de Pombal, primeiro-ministro do reino português. O governador de Minas Gerais entre 1763 e 1768, Luiz Diogo Lobo da Silva, acatava a lei e procurava colocá-la em prática. Em 1764, a índia carijó Leonor, de Ouro Preto, pediu que fosse libertada da fazenda de Domingos de Oliveira. O colono mantinha a índia, seus três filhos e netos em cativeiro e os tratava a surras. Ela ganhou a causa - uma escolta foi à fazenda garantir a liberdade de sua família. Fora do cativeiro, em plena efervescência da corrida do ouro em Minas Gerais, Leonor não deve ter demorado para se arranjar e se misturar a população da cidade. Casos como o dela são bem diferentes da crônica simplista da extinção dos nativos Provam, como dizem os historiadores Maria de Resende e Hal Langfur, ”a presença inegável dos índios nos sertões e nas vilas durante todo o período colonial, demonstrando, portanto, que eles jamais foram extintos, como afirmou a historiografia tradicional”.

Em muitos casos, os índios nem precisaram sair de suas aldeias para entrar na sociedade. Os ocidentais foram até eles. Na década de 1750, quando os jesuítas foram expulsos do Brasil, Portugal resolveu transformar as aldeias indígenas em vilas e freguesias. Com isso, acabou a proibição de brancos nas aldeias. Nasceram assim muitos bairros e cidades que existem Até hoje. Eram aldeias as cidades de Carapicuíba, Guarulhos, Embu, Peruíbe, Barueri, Moji das Cruzes, na Grande São Paulo, além do próprio centro de São Paulo e bairros como São Miguel Paulista e Pinheiros. Também e o caso das cidades de Niterói, São Pedro da Aldeia e Mangaratiba, no Rio de Janeiro, como muitas outras pelo Brasil. Nas aldeias do litoral, a população se misturou pouco, seguindo com uma influência indígena mais forte. É o caso dos caiçaras, os nativos da praia. Assim como em 1500, estão presentes em quase todo o litoral brasileiro. Plantam mandioca, usam cestas flexíveis e alguns pescam em canoas de tronco escavado. No entanto, como não se consideram índios, não entram na conta da população indígena atual.

Na Amazônia, esse fenômeno ainda acontece. Quem visita a região se espanta ao conhecer pessoas com cara de índio, quase vestidas de índio e que ficam contrariadas ao serem chamadas de índio. Como nos últimos séculos, muitos indígenas preferem não ser chamados assim: 25 por cento da população indígena da Amazônia já mora em cidades, e só metade desse contingente, segundo a Funai, se considera índio, mesmo falando uma segunda língua e praticando rituais.

É verdade que essa miscigenação não foi tão intensa quanto entre africanos e portugueses ou entre índios e espanhóis de outras regiões da América. Pesquisas de ancestralidade genômica, que medem o quanto europeu, africano ou indígena um indivíduo é, sugerem que os brasileiros são em média 8 por cento indígenas. Uma análise de 2008 envolveu 594 voluntários, a maioria estudantes da Universidade Católica de Brasília que se consideravam brancos e pardos. A ancestralidade média do genoma dos universitários era 68,65 por cento europeia, 17,81 por cento africana, 8,64 por cento ameríndia e 4,87 por cento de outras origens. É pouco sangue indígena, mas não tanto pensando numa população de 190 milhões de habitantes. Se pudéssemos organizar esses genes em indivíduos cem por cento brancos, negros ou ameríndios, 8por cento dos brasileiros daria 15,2 milhões de pessoas, ou mais de quatro vezes a população indígena de 1500.

O número fica ainda maior se considerarmos como descendente de índios toda pessoa que tem o menor toque de sangue nativo. Em 2000, um estudo do laboratório Gene, da Universidade Federal de Minas Gerais, causou espanto ao mostrar que 3 por cento dos brasileiros que se consideram brancos têm DNA mitocondrial vindo de mães índias. ”Em outras palavras, embora desde 1500 o número de nativos no Brasil tenha se reduzido a 10 por cento do original (de cerca de 3,5 milhões para 325 mil), o número de pessoas com DNA mitocondrial ameríndio aumentou mais de dez vezes”, escreveu o geneticista Sérgio Danilo Pena no Retrato Molecular do Brasil. Esses números sugerem que muitos índios largaram as aldeias e passaram a se considerar brasileiros. Hoje, seus descendentes vão ao cinema, andam de avião, escrevem livros e, como seus antepassados, tomam banho todos os dias.

A imagem mais divulgada do descobrimento do Brasil é aquela dos portugueses na praia, com as caravelas ao fundo, sendo recebidos por índios curiosos que brotam da floresta. Na verdade, houve um episódio que aconteceu antes: os índios subiram nas caravelas. Pero Vaz de Caminha, o repórter daquela viagem, relata em sua carta que, antes de toda a tripulação desembarcar na praia, dois índios foram recebidos ”com muitos agrados e festa” no navio principal. Provaram bolos, figo e mel (mas cuspiram as comidas com nojo), e ficaram espantadíssimos ao conhecer uma galinha. ”Quase tiveram medo dela — não lhe queriam tocar, para logo depois tomá-la, com grande espanto nos olhos”, escreveu Caminha. Essa imagem sugere que, naquela tarde de abril de 1500, os índios também fizeram sua descoberta. A chegada dos europeus revelou a eles um universo de tecnologias, plantas, animais e modos de pensar até então desconhecidos.


Até a chegada de franceses, portugueses e holandeses ao Brasil, os índios não conheciam a domesticação de animais, a escrita, a tecelagem, a arquitetura em pedra. Assentados sobre enormes jazidas, não tinham chegado à Idade do Ferro e nem mesmo à do Bronze. Armas e ferramentas eram feitas de galhos, madeira, barro ou pedra, e o fogo tinha um papel essencial em guerras e caçadas. Até conheciam a agricultura, mas em geral era uma agricultura rudimentar, pouco intensiva e restrita a roças de amendoim e mandioca. Dependendo da sorte na caça e na coleta, passavam por períodos de fome. Não desenvolveram tecnologias de transporte. Não conheciam a roda. A roda.

Dá muita vontade de afirmar que os índios eram naturalmente incapacitados para não ter nem ideia dessas tecnologias básicas, mas não há motivo para isso. Eles são na verdade heróis do povoamento humano no fim do mundo, a América, o último continente da Terra a abrigar o homem. A chegada a um lugar tão distante custou-lhes o isolamento cultural.

Entre 50 e 60 mil anos atrás, os ancestrais de índios e portugueses eram o mesmo grupo de caçadores e coletores. Tinham a mesma aparência, os mesmos costumes, a mesma língua rudimentar. Caminhando juntos rumo ao norte da África, contornaram o mar Mediterrâneo e chegaram ao Oriente Médio. Durante a caminhada de centenas de gerações, alguns deles perderam contato e se separaram. Uns debandaram à esquerda, rumo à península Ibérica, enquanto outros continuaram subindo pela Ásia.

O que hoje conhecemos como Ásia era então um bloco de gelo sem fim. Perambulavam por ali mamutes e alces-gigantes cuja carne deveria ser deliciosa. Com o fim da Idade do Gelo, parte dessas geleiras derreteu e o nível do mar subiu. Alguns caçadores nômades não devem ter percebido, mas já estavam na América, separados dos colegas asiáticos por um oceano. Até então, nenhuma barreira tão definitiva tinha separado o homem. Aos primeiros Americanos, não restava outra saída senão migrar para o Sul. Foi assim que chegaram ao Brasil, cerca de 15 mil anos atrás.

O isolamento na América deixou os nativos Americanos de fora da mistura cultural que marcou o convívio entre europeus, africanos e asiáticos. Esses povos entraram em contato uns com os outros já na Antiguidade. O choque de civilizações fez a tecnologia se espalhar. Por meio de guerras, conquistas ou mesmo pelo comércio, tecnologias e novos costumes passavam de cultura a cultura. Já os Americanos viveram muito mais tempo sem novidades vindas de fora. Tiveram que se virar sozinhos em territórios despovoados, sem ter com quem trocar ou copiar novas técnicas

De repente, porém, aconteceu um fato extraordinário. Apareceram no horizonte enormes ilhas de madeira, que eram na verdade canoas altas cheias de homens estranhos. Numa quarta-feira ensolarada do sul da Bahia, duas pontas da migração do homem pela Terra, que estavam separadas havia 50 mil anos, ficaram frente a frente. Os milênios de isolamento dos índios brasileiros tinham enfim acabado.

Antropólogos e cientistas sociais não cansam de repetir que é preciso valorizar a cultura indígena. Os índios que encontraram os portugueses no século 16 não estavam nem aí para isso. Não sabiam nada de antropologia e migração humana, mas logo perceberam quanto aquele encontro era sensacional. Fizeram de tudo para conquistar a amizade dos novos (ou antigos) amigos. Antes que os brancos desembarcassem, subiram nos navios para conhecê-los. Na praia, deram presentes, estoques de mandioca e mulheres se ofereceram generosas. Devem ter achado urgente misturar-se com aquela cultura e se apoderar dos objetos diferentes que aqueles homens traziam.

A história tradicional diz que os portugueses deram quinquilharias aos índios em troca de coisas muito mais valiosas, como pau-brasil e animais exóticos. Isso e achar que os índios eram completos idiotas. Aos seus olhos, nada poderia ser mais fascinante que a cultura e os objetos dos visitantes. Não eram só quinquilharias que os portugueses ofereciam, mas riquezas e costumes selecionados durante milênios de contato com civilizações da Europa, da Ásia e da África, que os Americanos, isolados por uma faixa de oceano de 4 mil quilômetros, não puderam conhecer.

Comprar aqueles artefatos com papagaios ou pau-brasil era um ótimo negócio. Seria como trocar roupas velhas que ocupam espaço no armário por uma espada jedi de Guerra nas Estrelas.

Imagine, por exemplo, a surpresa dos índios ao conhecer um anzol.

Não dependiam mais da pontaria para conseguir peixes, e agora eram capazes de capturar os peixes que ficavam no fundo. Um machado também deve ter sido uma aquisição sem precedentes. ”As facas e machados de aço dos europeus eram ferramentas que reduziam em muito o seu trabalho, porque eliminavam a fama extenuante de lascar pedra e lavrar madeira, e encurtavam em cerca de oito vezes o tempo gasto para derrubar árvores e esculpir canoas”, escreveu o historiador Americano Warren Dean. ”E difícil imaginar o quanto deve ter sido gratificante seu súbito ingresso na idade do ferro[...].” No começo, os portugueses tentaram esconder dos índios a técnica de produzir metais, proibindo os ferreiros de ter índios como ajudantes. Mas a metalurgia escapou do controle e se espalhou pela floresta. A técnica foi transmitida entre os índios a ponto de os europeus, quando entravam em contato com uma tribo isolada, já encontrarem flechas com pontas metálicas.

Os índios adotaram não só a tecnologia europeia. Assim como os portugueses ficaram encantados com as florestas brasileiras, eles se fascinaram com a natureza que veio da Europa. Novas plantas e animais domésticos, que ajudavam na caça e facilitavam o fardo de conseguir comida, foram logo incorporados pelas tribos. Poucos anos depois, seria difícil imaginar o Brasil sem essas espécies.

O melhor exemplo é a banana. Originária da região da Indonésia, a banana selvagem tinha uma casca grossa e a polpa rala. A partir de 5 mil anos atrás, o homem selecionou as variações mais saborosas, com casca mais fina e sem sementes. Plantações da fruta apareceram na índia há 2.300 anos (Alexandre, o Grande provou uma quando passou por lá) e logo depois a banana começou a ser cultivada na China. Com os árabes, atravessou toda a África (de onde vem seu nome atual) e chegou à Europa por influência moura. Ao todo, foram 6.500 anos de migração e melhoramento genético oferecidos aos índios brasileiros. Assim como a banana, os índios conheceram pelos portugueses frutas e plantas que hoje são símbolos nacionais e que não faltam em muitas tribos, como a jaca, a manga, a laranja, o limão, a carambola, a graviola, o inhame, a maçã, o abacate, o café, a tangerina, o arroz, a uva e até mesmo o coco (isso mesmo: até o descobrimento, não havia coqueiros no Brasil). Quando os jesuítas implantaram a agricultura intensiva perto das aldeias, obter comida deixou de ser um estorvo. Para quem estava acostumado a plantar só mandioca e amendoim, tendo que suar em caçadas demoradas para arranjar alguma proteína fresca, a vida ficou muito mais fácil.

É verdade que não faltavam frutas e cereais nas matas brasileiras, mas muitos eram espinhosos e difíceis de abrir, como a castanha-do-pará - e não porque os trópicos favorecem plantas esquisitas, mas porque essas espécies não passaram por um processo de domesticação e seleção artificial.

Outra novidade foi o animal doméstico. Com uma floresta farta, os nativos não precisaram desenvolver criações para o abate nem bichos de estimação como os dos europeus. Galinhas, porcos, bois, cavalos e cães foram novidades revolucionárias que os índios não demoraram a adotar. Novas palavras surgiram no vocabulário nativo, a maioria associando os novos animais ao fato extraordinário de serem mansos e amigáveis. O porco, em tupi, virou taiaçu-guaia (”porco manso”), os cães ganharam o nome de iaguás-mimbabas (”onças de criação”). Poucos anos depois de conhecerem a galinha, os índios já vendiam ovos para os portugueses.

Em 1534, quando vieram nos porões das caravelas os primeiros cavalos, fazia pelo menos 10 mil anos que equinos não pisavam no Brasil. Houve primos nativos de cavalos na América, mas eles tinham sido extintos durante mudanças climáticas ou pela caça excessiva. Quando chegou à América, o cavalo europeu era outro animal que havia passado por milênios de domesticação. Quando essa dádiva do melhoramento de espécies chegou à América, os índios ficaram estupefatos. Algumas tribos, como os guaicurus, do Pantanal, passaram a utilizar a novidade como instrumento de guerra. Nos terrenos pantaneiros, os guaicurus se apoderaram de manadas selvagens, descendentes provavelmente de cavalos perdidos por colonizadores espanhóis no norte da Argentina. No século 18, montando os cavalos em pelo, sem selas, e com lanças na mão, tornaram-se guerreiros invencíveis, impondo autoridade sobre outras tribos da região e até sobre os brancos. Nunca foram vencidos por adversários europeus e chegaram a ajudar o exército brasileiro durante a Guerra do Paraguai.

Mas nenhum animal doméstico provocou tanta surpresa e divertimento aos índios quanto o bom e velho cachorro. O primo mais próximo dos cães que havia no Brasil até então era o lobo-guará, animal arredio, que mete medo e é feio de doer. Os portugueses trouxeram de presente para os índios um lobo que tinha sido domesticado fazia 14 mil anos, no sul da China. Durante a convivência com o homem, ganharam preferência os cães que eram mansos, alertavam quanto a invasores e permaneciam com cara de filhotes mesmo depois de adultos. No século 16, já havia raças selecionadas para o pastoreio, a caça e a guarda. Nas caçadas dos índios, os cachorros farejavam presas e ajudavam a desentocá-las. ”Os cães ampliaram de forma extraordinária a capacidade de caça dos indígenas (e dos povoadores europeus e africanos) sobre determinados povoamentos faunísticos, principalmente os dos mamíferos”, conta o biólogo Evaristo Eduardo de Miranda no livro O Descobrimento da Biodiversidade.

O mito do índio como um homem puro e em harmonia com a natureza já caiu faz muito tempo, mas é incrível como ele sempre volta. Todo mundo sabe que personagens como Peri, o herói do livro O Guarani, de José de Alencar, estavam mais para relato épico que para história. Mesmo assim é difícil pensar diferente. Até os documentários etnográficos e os museus propagam a imagem do índio em paz com árvores e animais. Em janeiro de 2009, um texto informativo da exposição Oreretama, do Museu Histórico Nacional, do Rio de Janeiro, dizia que a sociedade indígena ”era um tipo de organização que tendia a manter o equilíbrio entre as comunidades humanas e o meio ambiente”. Não e bem assim. Antes de os portugueses chegarem, os índios já haviam extinguido muitas espécies e feito um belo estrago nas florestas brasileiras. Se não acabaram com elas completamente, e porque eram poucos para uma floresta tão grande.

As tribos que habitavam a região da mata atlântica botavam o mato abaixo com facilidade, usando uma ferramenta muito eficaz: o fogo. No fim da estação seca, praticavam a coivara, o ato de queimar o mato seco para abrir espaço para a plantação, empregado até hoje. No início, a coivara é eficiente, já que toda a biomassa da floresta vira cinzas que fertilizam o solo. Depois de alguns anos, o solo se empobrece. Pragas e ervas daninhas tomam conta. Como não havia enxadas e pesticidas e ninguém sabia adubar o solo, procuravam-se outras matas virgens para queimar e transformar em roças. O historiador Americano Warren Dean estimou que a alimentação de cada habitante exigia a devastação de 2 mil metros quadrados de mata por ano. ”Se os agricultores não abrissem senão floresta primária, teriam queimado cerca de 50 por cento dela pelo menos uma vez naquele milênio”, escreveu Dean. A devastação foi maior nas áreas mais povoadas. Nas florestas próximas ao litoral, os índios devem ter queimado a mata pelo menos duas vezes por século.

A conta de Warren Dean não considera incêndios acidentais nem queimadas por guerras ou para a caça. O fogo usado para fins de caça foi igualmente destruidor, já que a agricultura não era o forte dos índios brasileiros. É verdade que havia pequenas lavouras, principalmente de mandioca, mas ninguém imaginava fazer plantações intensivas ou métodos sistemáticos de colheita, replantio e rotação de culturas. Havia outro empecilho: grandes reservas de comida atraiam invasores, provocando mais guerras e mais mudanças - não valia a pena investir numa área que talvez tivesse de ser abandonada a qualquer momento. A grande vantagem ao fogo era facilitar a caça. Criando fogueiras coordenadas, um pequeno grupo de pessoas consegue controlar uma área enorme da mata sem precisar de machados, serrotes ou alguma outra ferramenta de ferro. As chamas desentocam animais escondidos na terra, no meio de arbustos e nos galhos. Aves, macacos, veados, capivaras, onças, lagartos e muitos outros animais corriam em direção ao mesmo ponto, onde os índios os esperavam para captura-los. Não e à toa que, assim como em todo o resto do mundo, nas florestas brasileiras só havia animais de grande porte, rápidos e agressivos os mais lentos foram logo extintos pelas populações nativas. Para caçar alguns poucos animais, eles destruíam uma área enorme da floresta.

O poder do fogo e da devastação ambiental ficou gravado no vocabulário tanto dos índios quanto dos portugueses. Na língua tupi, são muitas as palavras diferenciando as matas abertas, como capoeira (”roça abandonada”), cajuru (”entrada da mata”), caiuruçu (”incêndio”), capixaba (”terreno preparado para plantio”) Os índios caiapós usavam tanto o fogo que daí veio o nome da tribo - ”caiapó” significa ”que traz o fogo à mão”. Quando os europeus chegaram por aqui, refugiaram-se em campos que já haviam sido abertos pelos tupis. Alguns biólogos perguntam se as queimadas indígenas não apressaram ou favoreceram o surgimento de cerrados e campos de gramíneas em locais onde antes havia florestas.

Vêm das clareiras abertas pelos índios nomes de lugares como

Capão Redondo, Capão da Imbuía, Campo Limpo, Campos Campinas, São Bernardo do Campo, Santo André da Borda do Campo. Alguns locais mostram até quais índios abriram a mata, como a cidade fluminense de Campos dos Goytacazes.

A floresta era o maior inimigo dos índios, e é fácil entender por quê. Para quem mora na cidade, é possível enxergar as árvores como um abrigo da paz e de boas energias. Mas quem vive no mato conhece bem o significado da expressão ”inferno verde”. Não tanto por cobras e grandes animais que podem atacar o homem, mas pelos pequenos. Mosquitos, aranhas, formigas e todo tipo de artrópodes infernizam quem se atreve a passar a noite na mata. Simples picadas transmitem vírus e protozoários causadores de febres que inutilizam uma pessoa por semanas, quando não deixam seu corpo repleto de feridas permanentes, como no caso da leishmaniose. Mesmo nas clareiras e nas ocas, ainda hoje os índios precisam manter fogueiras constantemente acesas, para espantar mosquitos. Por isso, quando os portugueses se mostraram interessados em pau-brasil, os índios derrubaram as árvores com gosto. As ferramentas de aço satisfizeram seu desejo de se livrar do mato sem se importar com o resultado da devastação.


Em cinco séculos, algumas tribos fizeram tanto mal à mata quanto os não índios. Conta o historiador Warren Dean:

Um grupo caingangue residente no Paraná, que havia recebido ferramentas de aço apenas no século 20, lembrava-se de que não mais tinha de escalar árvores, outrora uma atividade muito frequente, para apanhar larvas e mel. Muitos dos que caíam das árvores morriam — agora eles simplesmente derrubavam as árvores.

Os jesuítas se encantavam com o fato de os índios não se preocuparem em acumular riquezas, não serem ”luxuriosos”. Essa característica também fazia os índios não se preocupar em deixar riquezas naturais para o futuro. Apesar de muitos líderes indígenas de hoje afirmarem que o homem branco destruiu a floresta enquanto eles tentavam protegê-la, esse discurso politicamente correto não nasceu com eles. Nasceu com os europeus logo nas primeiras décadas após a conquista.

Os portugueses criaram leis ambientais para o território brasileiro já no século 16. As ordenações do rei Manuel primeiro (1469-1521) proibiam o corte de árvores frutíferas em Portugal e em todas as colônias. No Brasil, essa lei protegeu centenas de espécies nativas. Em 1605, o Regimento do Pau-Brasil estabeleceu punições para os madeireiros que derrubassem mais árvores do que o previsto na licença. A pena variava conforme a quantidade de madeira cortada ilegalmente. Pequenos excedentes seriam apreendidos e renderiam ao concessionário multa de cem cruzados. Quem cortasse mais de seis toneladas receberia um castigo maior: pena de morte. A nova lei também estipulava regras de aproveitamento da floresta. O rei proibiu o abandono de toras e galhos pela mata, de modo que ”se aproveite todo o que for de receber, e não se deixe pelos matos nenhum pau cortado”. Os colonos também não podiam transformar matas de pau-brasil em roças.

”Essa legislação garantiu a manutenção e a exploração sustentável das florestas de pau-brasil até 1875, quando entrou no mercado a anilina”, escreveu o biólogo Evaristo Eduardo de Miranda. ”Ao contrário do que muitos pensam e propagam, a exploração racional do pau-brasil manteve boa parte da mata atlântica até o final do século 19 e não foi a causa do seu desmatamento, fato bem posterior.”

Genocídio e extermínio, palavras sempre usadas para se falar do contato dos portugueses com os índios, denotam ações com o propósito deliberado de matar um grupo de pessoas. Por mais cruéis que os portugueses e seus aliados índios tenham sido durante as bandeiras e caçadas de escravos nos sertões, essas ações respondem por uma pequena parte da enorme mortalidade de índios durante os primeiros séculos de Brasil. A grande maioria deles morreu por doenças que os portugueses trouxeram, sobretudo gripe, varíola e sarampo. O simples contágio criou epidemias que devastaram nações indígenas inteiras.

É injusto responsabilizar os portugueses por essas mortes.

Epidemias causadas pelo contato de etnias foram muito comuns na história do homem: não aconteceram só com os nativos da América. Talvez os antepassados deles próprios, durante milênios de diáspora pelo mundo, tenham transmitido doenças a povos de regiões onde pisaram. Além disso, no século 16, ainda demoraria trezentos anos para se descobrir que as doenças contagiosas são causadas por micro-organismos e passam de uma pessoa a outra pela respiração e pela picada de mosquitos. Tinha-se apenas uma noção vaga da transmissão de doenças venéreas.

Acreditava-se então que as doenças vinham de ares malignos, ”maus ares”, expressão que deu o nome à malária. Os colonos e navegadores morriam de medo de ser contaminados por esses ares no Brasil. Existe uma história muito boa sobre esse temor. Em 1531, a expedição de Martim Afonso de Souza chegou à ilha de Queimada Grande, no litoral de São

Paulo, que estava repleta de fragatas e mergulhões. Ao voltar para a caravela, os marinheiros de repente sentiram um vento quente vindo da ilha. Para eles, era o típico vento demoníaco causador de febre. Pensando em evitar que o suposto vento contaminado se espalhasse, voltaram e atearam fogo na ilha inteira.

Diante da morte inexplicável de tantos nativos, os colonos e os jesuítas não ficavam contentes. Numa carta de 1558, o padre Antônio Blásquez parece triste ao relatar que justamente os índios mais próximos e comprometidos com a Igreja eram os primeiros a morrer. Isso acontecia tanto que, entre os pajés, corria o boato de que a fé cristã matava.

Segundo o padre, depois da morte do filho de um cacique, ”os feiticeiros diziam que o batismo o matara, e que por ser tanto nosso amigo, morrera”.

Na verdade, quando chegaram ao Brasil, os portugueses pensavam que eles é que ficariam doentes. Era isso o que acontecia aos navegadores no resto do mundo. Os habitantes da África e da Ásia eram muito mais resistentes a doenças que os portugueses. Nesses lugares, os europeus ficavam derrubados diante de vírus e parasitas estranhos, para os quais não tinham defesa biológica. Para piorar, depois de meses de alimentação precária nas caravelas, o sistema imunológico ia para o chão. Quando voltavam das viagens, novas doenças apareciam em Portugal. O tifo surgiu depois do contato com os turcos no leste do Mediterrâneo; a febre amarela veio da África; o cólera, dos indianos. Essas doenças então desconhecidas causaram crises de mortalidade na população portuguesa. Com base em registros de óbitos e nascimentos em Lisboa, a historiadora portuguesa Teresa Rodrigues descobriu que a cidade viveu grandes crises de mortalidade a partir de 1550, provocadas sobretudo por ”epidemias importadas por via dos contatos marítimos e terrestres”.

Apesar de pouca gente falar sobre isso, centenas de milhares de mortes devem ter sido causadas na Europa por males Americanos. Ao chegarem a América, espanhóis, franceses, portugueses e holandeses penaram com doenças novas e as transmitiram pelo mundo. O antropólogo Michael Crawford, diretor do Laboratório de Antropologia Biológica da Universidade do Kansas, nos Estados Unidos, cita alguns desses males: purupuru, bouba e sífilis venérea, doenças infecciosas causadas por treponemas, novas cepas de tuberculose (doença que foi uma das principais causas de morte até a popularização dos antibióticos e ainda hoje mata quase 3 milhões de pessoas por ano), doenças autoimunes e parasitas, muitos parasitas da pele e do intestino.

Por muito tempo não houve consenso de que a sífilis tenha sido transmitida aos europeus pelos índios Americanos. Apesar de a primeira epidemia ter acontecido em Nápoles no ano de 1495, logo depois das primeiras viagens a América, havia descrições mais antigas de sintomas similares. A certeza veio em 2008, com um estudo genético da Universidade Emory, dos Estados Unidos. Os pesquisadores compararam o DNA de diferentes bactérias do gênero Treponema. Conseguiram montar uma árvore genealógica das bactérias, revelando que a causadora da sífilis e afiliada de bactérias americanas. Com a análise, ficou provado que a doença saiu da América a bordo das caravelas.

A sífilis causou tragédias na Europa. Os historiadores Carmen

Bernand e Serge Gruzmski, autores do livro História do Novo Mundo, estimam que ela atingiu mais de um terço dos navegadores. O homem apontado como o primeiro sifilítico da Europa é justamente um navegador:

Martin Alonso Pinzón, comandante da caravela Pinta, que descobriu a América junto com Cristóvão Colombo, em 1492. Pinzón teria feito sexo com índias na ilha de Hispaniola (hoje Haiti e República Dominicana). Morreu em 31 de março de 1493, logo depois de voltar da viagem do descobrimento, com o corpo cheio de feridas causadas pela sífilis. Nos estágios iniciais, a sífilis provoca feridas no pênis ou na vagina. À medida que a infecção se desenvolve, feridas, manchas e cascas se espalham pelo corpo, caem tufos de cabelos e nascem verrugas no ânus. No último estágio, a bactéria atinge artérias e cérebro. Antes de morrer, o doente fica cego e, muitas vezes, louco. Espalhando-se pelos soldados, e nas cidades portuárias, essa doença aterrorizante devastou populações e adquiriu novos nomes por onde passou - ”mal das índias”, ”mal napolitano”, ”mal gálico” ou ”mal francês”. Cidades da Europa chegaram a fechar bordéis, proibindo a mais antiga profissão do mundo, na tentativa de conter a epidemia.

Os portugueses ainda sofriam com parasitas do intestino e da pele.

Numa terra desconhecida, germes simples viram um problema danado. Um bom exemplo é o bicho-de-pé Americano. Os índios tentavam lidar com o parasita mantendo os pés limpos e arejados. Já entre as alpargatas quentes, sujas e úmidas dos portugueses, o bicho-de-pé fazia a festa. Muitos europeus perderam o pé antes de descobrir que deveriam tirar o danado com uma agulha. O bicho-de-pé americano se espalhou para colônias europeias na África, causando uma ”epidemia de dedos perdidos e infecções secundárias fatais de tétano”, como afirma o historiador Alfred Crosby. Em 1605, o padre Jerônimo Rodrigues (que era bom em escrever relatos resmungões) contou que até mesmo os índios de Santa Catarina sofriam com o parasita:

Há nesta terra grandíssimo número de imundícies, scilicet, bichos de pés e muito mais pequenos que os de lá, de que todos andam cheios. E alguns meninos trazem os dedinhos das mãos, que é uma piedade, sem haver quem lhos tire.

Americanos e europeus também trocaram costumes que se revelariam mortais. É muito comum atribuir aos brancos a responsabilidade pelo alcoolismo entre índios. Em diversas tribos, os homens se tornam alcoólatras com muita facilidade, o que desestrutura a sociedade indígena. Ninguém, no entanto, culpa os índios por um hábito tão trágico quanto o álcool: fumar tabaco. Até os navegadores descobrirem a América, não havia cigarros na Europa nem o costume de tragar fumaça. Já os índios americanos fumavam, cheiravam e mascavam a folha de tabaco à vontade. A planta significava uma ligação com os espíritos e era usada em cerimônias religiosas. Entre os tupis, os caraíbas (um tipo de líderes espirituais) pregavam em transe, exaltados com o fumo muito intenso de tabaco. Em outras tribos, fumava-se antes de guerras, para aliviar dores e também por prazer. Nas colônias do Caribe e do Brasil, os poderes do tabaco logo conquistaram os brancos. Vasco Fernandes Coutinho, donatário da capitania hereditária do Espírito Santo, chegou a ser condenado por ”beber fumo” com os índios.

Os jesuítas usavam a expressão "beber fumo" porque ainda não existia no português o verbo "fumar" - ele só entraria em nosso vocabulário em 1589, segundo o Dicionário Houaiss.

Apesar de evitarem aderir aos costumes indígenas, os padres faziam vista grossa para o fumo - eles também deveriam dar umas tragadas, pois acreditavam que a ”erva santa” fazia bem para curar feridas, eliminar o catarro e aliviar o estômago, órgão que, diante da alimentação brasileira, fazia os padres sofrer.

O tabaco fez tanto sucesso no litoral de São Paulo que Luís de

Góis, um dos fundadores da capitania de São Vicente, resolveu levar uma amostra de fumo ao rei de Portugal. Na corte, a planta chamou a atenção de Jean Nicot, embaixador francês em terras lusitanas. Entusiasmado com a descoberta, o diplomata mandou, em 1560, uma remessa de fumo para a sua rainha, Catarina de Médici. A rainha francesa adorava novidades e achou o tabaco sensacional, fazendo a planta cair no gosto da corte francesa. O embaixador Nicot acabou emprestando seu sobrenome para o nome científico da erva (Nicotiana tabacum), assim como da substância ”nicotina”.

Os primeiros carregamentos de tabaco consumidos entre os nobres europeus vieram do Brasil. É provável que a primeira plantação de tabaco para exportação do mundo tenha sido uma roça paulista de 1548. Por quase três séculos, a planta foi o segundo maior produto de exportação do Brasil, atrás apenas da cana-de-açúcar. Séculos depois, com a industrialização do cigarro, o hábito de fumar tabaco resultaria numa catástrofe com milhões de mortes. A Organização Mundial de Saúde estima que o fumo vai matar l bilhão de pessoas no século 21. Culpa dos índios?

Claro que não. Os índios e seus descendentes não têm nenhuma responsabilidade sobre um hábito que copiamos deles. Na verdade, temos é que agradecer a eles por terem nos iniciado nesse costume maravilhoso que é fumar tabaco e outras ervas deliciosas. Da mesma forma, quem hoje se considera índio poderia deixar de culpar os outros por seus problemas.

Por volta de 1830, o escravo José Francisco dos Santos conquistou a liberdade. Depois de anos de trabalho forçado na Bahia, viu-se livre da escravidão, provavelmente comprando sua própria carta de alforria ou ganhando-a de algum amigo rico. Estava enfim livre do sistema que o tirou da África quando jovem, jogou-o num navio imundo e o trouxe amarrado para uma terra estranha. José tinha uma profissão - havia trabalhado cortando e costurando tecidos, o que lhe rendeu o apelido de ”Zé Alfaiate”. No entanto, o ex-escravo decidiu dar outro rumo a sua vida: foi operar o mesmo comércio do qual tinha sido vítima. Voltou à África e se tornou traficante de escravos. Casou-se com uma das filhas de Francisco Félix de Souza, o maior vendedor de gente da África atlântica, e passou a mandar ouro, negros e azeite de dendê para vários portos da América e da Europa. Foi o fotógrafo e etnólogo Pierre Verger que encontrou, com um neto de Zé Alfaiate, uma coleção de 112 cartas escritas pelo ex-escravo. As mensagens foram enviadas entre 1844 e 1871 e tratam de negócios com Salvador, Rio de Janeiro, Havana (Cuba), Bristol (Inglaterra) e Marselha (França). Em 2 de outubro de 1846, numa carta para um comerciante da Bahia, o traficante conta que teve problemas ao realizar um dos atos mais terríveis da escravidão - marcar os negros com ferro incandescente. Diz ele:

Por esta goleta [uma espécie de escuna] embarquei por minha conta em nome do sr. Joaquim d’Almeida 20 balões [escravos] sendo 12 H. e 8 M. com a marca ”5” no seio direito. Eu vos alerto que a marca que vai na listagem geral é ”V seio” mas, como o ferro quebrou durante a marcação, não houve então outro remédio senão marcar com ferro ”5”.

Talvez Zé Alfaiate tenha entrado para o tráfico por um desejo de vingança, na tentativa de repetir com outras pessoas o que ele próprio sofreu. O mais provável, porém, é que visse no comércio de gente uma chance comum e aceitável de ganhar dinheiro, como costurar ou exportar azeite. Havia muito tempo que o costume de atacar povos inimigos e vendê-los era comum na África. Com o tráfico pelo oceano Atlântico, as pilhagens a povos do interior, feitas para capturar escravos, aumentaram muito - assim como o lucro de reis, nobres cidadãos comuns africanos que operavam a venda. Essa personalidade dupla da África diante do tráfico de escravos às vezes aparece num mesmo indivíduo, como é o caso de Zé Alfaiate. Ex-escravo e traficante, foi ao mesmo tempo vítima e carrasco da escravidão.

Não era preciso sair do Brasil para agir como ele. Por aqui, os escravos tiveram que se adaptar a um novo modo de vida, mas não abandonaram costumes do outro lado do Atlântico. Nas vilas da corrida do ouro de Minas Gerais, nas fazendas de tabaco da Bahia, era comum africanos ou descendentes escravizarem. Como um pedaço da África, cristão e falante de português, o Brasil também abrigou reis africanos que vinham se exilar no país quando a situação do seu reino complicava, embaixadores negros interessados em negociar o preço de escravos, e até mesmo filhos de nobres africanos que vinham estudar na Bahia, numa espécie de intercâmbio estudantil. Esses fenômenos certificam uma boa metáfora que Joaquim Nabuco usa no livro O Abolicionismo, clássico do movimento brasileiro pelo fim da escravidão. Nabuco dizia que o tráfico negreiro provocou uma união das fronteiras brasileiras e africanas, como se a África tivesse aumentado seu território alguns milhares de quilômetros. ”Lançou-se, por assim dizer, uma ponte entre a África e o Brasil, pela qual passaram milhões de africanos, e estendeu-se o habitat da raça negra das margens do Congo e do Zambeze às do São Francisco e do Paraíba do Sul.” Com os mais de 4 milhões de escravos que vieram forçados ao Brasil, veio também a África. Na década de 1990, quando os historiadores passaram a dar mais peso à influência da cultura africana na escravidão brasileira, os estudos sofreram uma revolução. Em obras como Em Costas Negras, publicada em 1997 pelo historiador Manolo Florentino, houve uma mudança de ponto de vista muito parecida com a que aconteceu com os índios. Os negros deixaram de ser vistos como vítimas constantemente passivas, que nunca agiam por escolha própria. ”Em franca reação à visão reificadora do africano sugerida pelos estudos das décadas de 1960 e 1970, os historiadores buscaram mostrar o negro como sujeito da história, protagonista da escravidão, ainda que não aquilombado, quando não cúmplice do cativeiro”, escreveu o historiador Ronaldo Vainfas. Essa nova corrente de estudos descobriu personagens bem diferentes dos pares ”senhor cruel/escravo rebelde” ou ”senhor camarada/escravo submisso”, como se refere o historiador Flávio dos Santos Gomes. Também fez aflorar histórias aparentemente desagradáveis para minorias e movimentos sociais, como as que estão a seguir.


No auge de seu poder, o rei africano Kosoko, de Lagos, hoje capital da Nigéria, resolveu dar um presente para três de seus filhos. Mandou-os para uma espécie de intercâmbio estudantil do outro lado do Atlântico, provavelmente de carona num navio negreiro cheio de escravos vendidos pelo pai deles.

Na Bahia, os irmãos ficaram a cargo de um comerciante amigo do rei. Segundo Benjamin Campbell, cônsul inglês em Lagos, os três ”foram muito bem tratados na Bahia, como se fossem príncipes”. Voltaram para casa em 28 de agosto de 1850, batizados, com nomes cristãos - Simplício, Lourenço e Camílio - e elogiando a hospitalidade dos brasileiros, viagens assim não foram raras durante a escravidão. Algumas décadas antes da viagem dos três irmãos, em 1781, o príncipe Guinguin foi carregado por seus súditos ”a bordo de um navio português para ser levado ao Brasil, onde foi educado”, conta Pierre Verger. ”Forneceram-lhe vinte escravos para sua subsistência.”

Zumbi, o maior herói negro do Brasil, o homem em cuja data de morte se comemora em muitas cidades do país o Dia da Consciência Negra, mandava capturar escravos de fazendas vizinhas para que eles trabalhassem forçados no Quilombo dos Palmares. Também sequestrava mulheres, raras nas primeiras décadas do Brasil, e executava aqueles que quisessem fugir do quilombo.

Essa informação parece ofender algumas pessoas hoje em dia, a ponto de preferirem omiti-la ou censurá-la, mas na verdade trata-se de um dado óbvio. É claro que Zumbi tinha escravos. Sabe-se muito pouco sobre ele - cogita-se até que o nome mais correto seja Zambi -, mas é certo que viveu no século 17. E quem viveu próximo do poder no século 17 tinha escravos, sobretudo quem liderava algum povo de influência africana.

Desde a Antiguidade, os humanos guerrearam, conquistaram escravos e muitas vezes venderam os que sobravam. Até o século 19, em Angola e no Congo, de onde veio a maior parte dos africanos que povoaram Palmares, os sobás se valiam de escravos na corte e invadiam povoados vizinhos para capturar gente. O sistema escravocrata só começou a ruir quando o Iluminismo ganhou força na Europa e nos Estados Unidos. Com base na ideia de que todos as pessoas merecem direitos iguais, surgiu a Declaração dos Direitos da Virgínia, de 1776, e os primeiros protestos populares contra a escravidão, na Inglaterra. Os abolicionistas apareceram um século depois de Zumbi e a 7 mil quilômetros da região onde o Quilombo dos Palmares foi construído.

É difícil acreditar que, no meio das matas de Alagoas, Zumbi tenha se adiantado ao espírito humanista europeu ou previsto os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade da Revolução Francesa. É ainda mais difícil quando consultamos os poucos relatos de testemunhas que conheceram Palmares. Elas indicam o esperado: o quilombo se parecia com um povoado africano, com hierarquia rígida entre reis e servos. Os moradores chamavam o lugar de Ngola Janga, em referência aos reinos que já existiam na região do Congo e de Angola. Significa ”novo reino” ou ”novo sobado”.

Ganga Zumba, tio de Zumbi e o primeiro líder do maior quilombo do Brasil, provavelmente descendia de imbangalas, os ”senhores da guerra” da África Centro-Ocidental. Os imbangalas viviam de um modo similar ao dos moradores do Quilombo dos Palmares. Guerreiros temidos, eles habitavam vilarejos fortificados, de onde partiam para saques e sequestros dos camponeses de regiões próximas. Durante o ataque a comunidades vizinhas, recrutavam garotos, que depois transformariam em guerreiros, e adultos para trocar por ferramentas e armas com os europeus. Algumas mulheres conquistadas ficavam entre os guerreiros como esposas. ”As práticas dos imbangalas tinham o propósito de aterrorizar a população em geral e de encorajar as habilidades marciais - bravura na guerra, lealdade total ao líder militar e desprezo pelas relações de parentesco”, afirma o historiador Americano Paul Lovejoy. ”Essas práticas incluíam a morte de escravos antes da batalha, canibalismo e infanticídio.” Tanta dedicação a guerras e sequestros fez dos imbangalas grandes fornecedores de escravos para a América. Lovejoy estima que três quartos dos cerca de 1,7 milhão de escravos embarcados entre 1500 e 1700 vieram da África Centro-Ocidental, sobretudo do sul do Congo. Como a aliança com os portugueses às vezes se quebrava, os guerreiros também acabavam sendo escravizados. Provavelmente foi assim que os pais ou avôs de Zumbi chegaram ao Brasil.

Entre os soldados que lutaram para derrubar o Quilombo de

Palmares, o que mais impressionava, além da força militar dos quilombolas, era o modo como eles se organizavam politicamente. Segundo o relato do capitão holandês João Blaer, que lutou contra o quilombo em 1645, todos os quilombolas eram [...] obedientes a um que se chama o Ganga Zumba, que quer dizer Senhor Grande; a este têm por seu rei e senhor todos os mais, assim naturais dos Palmares como vindos de fora; tem palácio, casas de sua família, é assistido de guardas e oficiais que costumam ter as casas reais. É tratado com todos os respeitos de rei e com todas as honras de senhor. Os que chegam à sua presença põem os joelhos no chão e batem palmas das mãos em sinal de reconhecimento e protestação de sua excelência; falam-lhe ”majestade”, obedecem-lhe por admiração.

Não há relatos de que os moradores de Palmares cometessem infanticídio ou canibalismo, mas diversos falam de ataques a camponeses, sequestros de homens e mulheres e ainda de vilarejos fortificados.

Para obter escravos, os quilombolas faziam pequenos ataques a povoados próximos. ”Os escravos que, por sua própria indústria e valor, conseguiam chegar aos Palmares, eram considerados livres, mas os escravos raptados ou trazidos à força das vilas vizinhas continuavam escravos”, afirma Edison Carneiro no livro O Quilombo dos Palmares, de 1947. No quilombo, os moradores deveriam ter mais liberdade que fora dele. Mas a escolha em viver ali deveria ser um caminho sem volta, o que lembra a máfia hoje em dia. ”Quando alguns negros fugiam, mandava-lhes crioulos no encalço e uma vez pegados, eram mortos, de sorte que entre eles reinava o temor”, afirma o capitão João Blaer. ”Consta mesmo que os palmaristas cobravam tributos - em mantimentos, dinheiro e armas - dos moradores das vilas e povoados. Quem não colaborasse poderia ver suas propriedades saqueadas, seus canaviais e plantações incendiados e seus escravos sequestrados”, afirma o historiador Flávio Gomes no livro Palmares.

Não dá para ter certeza de que a vida no quilombo era assim mesmo, mas os vestígios e o pensamento da época levam a crer que sim. Apesar disso, Zumbi ganhou (um retrato muito diferente por historiadores marxistas das décadas de 1950 a 1980. Décio Freitas, Joel Rufino dos Santos e Clóvis Moura fizeram do líder negro do século 17 um representante comunista que dirigia uma sociedade igualitária. Para eles, enquanto fora do quilombo predominava a monocultura de cana-de-açúcar para exportação, faltava comida e havia classes sociais oprimidas e opressoras (tudo de ruim), em Palmares não existiam desníveis sociais, plantavam-se alimentos diversos e por isso havia abundância de comida (tudo de bom). ”Nesta bibliografia de viés marxista há um esforço em caracterizar Palmares como a primeira luta de classes na História do Brasil”, afirma a historiadora Andressa Barbosa dos Reis em um estudo de 2004.

A imaginação sobre Zumbi foi mais criativa na obra do jornalista gaúcho Décio Freitas, amigo de Leonel Brizola e do ex-presidente João Goulart. No livro Palmares: A Guerra dos Escravos, Décio afirma ter encontrado cartas mostrando que o herói cresceu num convento de Alagoas, onde recebeu o nome de Francisco e aprendeu a falar latim e português. Aos 15 anos, Atendendo ao chamado do seu povo, teria partido para o quilombo. As cartas sobre a infância de Zumbi teriam sido enviadas pelo padre Antônio Melo, da vila alagoana de Porto Calvo, para um padre de Portugal, onde Décio as teria encontrado. Ele nunca mostrou as mensagens para os historiadores que insistiram em ver o material. A mesma suspeita recai sobre outro livro seu, O Maior Crime da Terra. O historiador Cláudio Pereira Elmir procurou por cinco anos algum vestígio dos registros policiais que Décio cita. Não encontrou nenhum. ”Tenho razões para acreditar que ele inventou as fontes e que pode ter feito o mesmo em outras obras”, disse-me Cláudio no fim de 2008. O nome de Francisco, pura cascata de Décio Freitas, consta até hoje no Livro dos Heróis da Pátria da Presidência da República.

Também se deve à historiografia marxista o fato de Zumbi ser muito mais importante hoje em dia do que Ganga Zumba, seu antecessor. Enquanto o primeiro ficou para a história como herói da resistência do quilombo, seu tio faz o papel de traidor. Essa fama se deve ao acordo de paz que fez com os portugueses em 1678. Ganga Zumba, recebido em Recife quase como chefe de Estado, prometeu ao governador de Pernambuco mudar o quilombo para um lugar mais distante e devolver os moradores que não tivessem nascido em Palmares. Em troca, os portugueses se comprometeriam a deixar de atacar o grupo. Os historiadores marxistas acharam a promessa de entregar os negros uma traição, que Zumbi teria se recusado a levar adiante. ”A ele [Zumbi] foram associados os valores da guerra, da coragem, do destemor e principalmente a postura de resistir continuamente às forças coloniais”, conta a historiadora Andressa dos Reis. ”Esta visão de Freitas foi a imagem do Quilombo e de Zumbi que se cristalizou nas décadas de 1980 e 1990.” Os poucos documentos do período não são o bastante para dizer que Zumbi agiu diferente de Ganga Zumba e foi mesmo contra o acordo de paz. Se foi, pode ter agido contra o próprio quilombo, provocando sua destruição. Acordos entre comunidades negras e os europeus eram comuns na América Latina - e nem sempre os quilombolas cumpriram a promessa de devolver escravos. No Suriname, o quilombo dos negros chamados saramacás respeitou o acordo de paz com os holandeses. Esse grupo, que o historiador Americano Richard Price considera a ”experiência mais extraordinária de quilombos no Novo Mundo”, conseguiu manter o povoado protegido dos ataques europeus. Tem hoje 5 mil habitantes.

Em 1685, na tentativa de fazer um acordo de paz com o quilombo, o rei de Portugal mandou uma mensagem carinhosa para Zumbi. Um trecho: ”Convido-vos a assistir em qualquer estância que vos convier, com vossa mulher e vossos filhos, e todos os vossos capitães, livres de qualquer cativeiro ou sujeição, como meus leais e fiéis súditos, sob minha real proteção”.

Hoje em dia relacionamos negros e escravos porque a escravidão africana foi a última. Essa relação tem uma história muito recente. Houve um tempo em que escravos lembravam brancos de olhos de 

No auge de seu poder, o rei africano Kosoko, de Lagos, hoje capital da Nigéria, resolveu dar um presente para três de seus filhos. Mandou-os para uma espécie de intercâmbio estudantil do outro lado do Atlântico, provavelmente de carona num navio negreiro cheio de escravos vendidos pelo pai deles.

Na Bahia, os irmãos ficaram a cargo de um comerciante amigo do rei. Segundo Benjamin Campbell, cônsul inglês em Lagos, os três ”foram muito bem tratados na Bahia, como se fossem príncipes”. Voltaram para casa em 28 de agosto de 1850, batizados, com nomes cristãos - Simplício, Lourenço e Camílio - e elogiando a hospitalidade dos brasileiros, viagens assim não foram raras durante a escravidão. Algumas décadas antes da viagem dos três irmãos, em 1781, o príncipe Guinguin foi carregado por seus súditos ”a bordo de um navio português para ser levado ao Brasil, onde foi educado”, conta Pierre Verger. ”Forneceram-lhe vinte escravos para sua subsistência.”

Zumbi, o maior herói negro do Brasil, o homem em cuja data de morte se comemora em muitas cidades do país o Dia da Consciência Negra, mandava capturar escravos de fazendas vizinhas para que eles trabalhassem forçados no Quilombo dos Palmares. Também sequestrava mulheres, raras nas primeiras décadas do Brasil, e executava aqueles que quisessem fugir do quilombo.

Essa informação parece ofender algumas pessoas hoje em dia, a ponto de preferirem omiti-la ou censurá-la, mas na verdade trata-se de um dado óbvio. É claro que Zumbi tinha escravos. Sabe-se muito pouco sobre ele - cogita-se até que o nome mais correto seja Zambi -, mas é certo que viveu no século 17. E quem viveu próximo do poder no século 17 tinha escravos, sobretudo quem liderava algum povo de influência africana.

Desde a Antiguidade, os humanos guerrearam, conquistaram escravos e muitas vezes venderam os que sobravam. Até o século 19, em Angola e no Congo, de onde veio a maior parte dos africanos que povoaram Palmares, os sobás se valiam de escravos na corte e invadiam povoados vizinhos para capturar gente. O sistema escravocrata só começou a ruir quando o Iluminismo ganhou força na Europa e nos Estados Unidos. Com base na ideia de que todos as pessoas merecem direitos iguais, surgiu a Declaração dos Direitos da Virgínia, de 1776, e os primeiros protestos populares contra a escravidão, na Inglaterra. Os abolicionistas apareceram um século depois de Zumbi e a 7 mil quilômetros da região onde o Quilombo dos Palmares foi construído.

É difícil acreditar que, no meio das matas de Alagoas, Zumbi tenha se adiantado ao espírito humanista europeu ou previsto os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade da Revolução Francesa. É ainda mais difícil quando consultamos os poucos relatos de testemunhas que conheceram Palmares. Elas indicam o esperado: o quilombo se parecia com um povoado africano, com hierarquia rígida entre reis e servos. Os moradores chamavam o lugar de Ngola Janga, em referência aos reinos que já existiam na região do Congo e de Angola. Significa ”novo reino” ou ”novo sobado”.

Ganga Zumba, tio de Zumbi e o primeiro líder do maior quilombo do Brasil, provavelmente descendia de imbangalas, os ”senhores da guerra” da África Centro-Ocidental. Os imbangalas viviam de um modo similar ao dos moradores do Quilombo dos Palmares. Guerreiros temidos, eles habitavam vilarejos fortificados, de onde partiam para saques e sequestros dos camponeses de regiões próximas. Durante o ataque a comunidades vizinhas, recrutavam garotos, que depois transformariam em guerreiros, e adultos para trocar por ferramentas e armas com os europeus. Algumas mulheres conquistadas ficavam entre os guerreiros como esposas. ”As práticas dos imbangalas tinham o propósito de aterrorizar a população em geral e de encorajar as habilidades marciais - bravura na guerra, lealdade total ao líder militar e desprezo pelas relações de parentesco”, afirma o historiador Americano Paul Lovejoy. ”Essas práticas incluíam a morte de escravos antes da batalha, canibalismo e infanticídio.” Tanta dedicação a guerras e sequestros fez dos imbangalas grandes fornecedores de escravos para a América. Lovejoy estima que três quartos dos cerca de 1,7 milhão de escravos embarcados entre 1500 e 1700 vieram da África Centro-Ocidental, sobretudo do sul do Congo. Como a aliança com os portugueses às vezes se quebrava, os guerreiros também acabavam sendo escravizados. Provavelmente foi assim que os pais ou avôs de Zumbi chegaram ao Brasil.

Entre os soldados que lutaram para derrubar o Quilombo de

Palmares, o que mais impressionava, além da força militar dos quilombolas, era o modo como eles se organizavam politicamente. Segundo o relato do capitão holandês João Blaer, que lutou contra o quilombo em 1645, todos os quilombolas eram [...] obedientes a um que se chama o Ganga Zumba, que quer dizer Senhor Grande; a este têm por seu rei e senhor todos os mais, assim naturais dos Palmares como vindos de fora; tem palácio, casas de sua família, é assistido de guardas e oficiais que costumam ter as casas reais. É tratado com todos os respeitos de rei e com todas as honras de senhor. Os que chegam à sua presença põem os joelhos no chão e batem palmas das mãos em sinal de reconhecimento e protestação de sua excelência; falam-lhe ”majestade”, obedecem-lhe por admiração.

Não há relatos de que os moradores de Palmares cometessem infanticídio ou canibalismo, mas diversos falam de ataques a camponeses, sequestros de homens e mulheres e ainda de vilarejos fortificados.

Para obter escravos, os quilombolas faziam pequenos ataques a povoados próximos. ”Os escravos que, por sua própria indústria e valor, conseguiam chegar aos Palmares, eram considerados livres, mas os escravos raptados ou trazidos à força das vilas vizinhas continuavam escravos”, afirma Edison Carneiro no livro O Quilombo dos Palmares, de 1947. No quilombo, os moradores deveriam ter mais liberdade que fora dele. Mas a escolha em viver ali deveria ser um caminho sem volta, o que lembra a máfia hoje em dia. ”Quando alguns negros fugiam, mandava-lhes crioulos no encalço e uma vez pegados, eram mortos, de sorte que entre eles reinava o temor”, afirma o capitão João Blaer. ”Consta mesmo que os palmaristas cobravam tributos - em mantimentos, dinheiro e armas - dos moradores das vilas e povoados. Quem não colaborasse poderia ver suas propriedades saqueadas, seus canaviais e plantações incendiados e seus escravos sequestrados”, afirma o historiador Flávio Gomes no livro Palmares.

Não dá para ter certeza de que a vida no quilombo era assim mesmo, mas os vestígios e o pensamento da época levam a crer que sim. Apesar disso, Zumbi ganhou (um retrato muito diferente por historiadores marxistas das décadas de 1950 a 1980. Décio Freitas, Joel Rufino dos Santos e Clóvis Moura fizeram do líder negro do século 17 um representante comunista que dirigia uma sociedade igualitária. Para eles, enquanto fora do quilombo predominava a monocultura de cana-de-açúcar para exportação, faltava comida e havia classes sociais oprimidas e opressoras (tudo de ruim), em Palmares não existiam desníveis sociais, plantavam-se alimentos diversos e por isso havia abundância de comida (tudo de bom). ”Nesta bibliografia de viés marxista há um esforço em caracterizar Palmares como a primeira luta de classes na História do Brasil”, afirma a historiadora Andressa Barbosa dos Reis em um estudo de 2004.

A imaginação sobre Zumbi foi mais criativa na obra do jornalista gaúcho Décio Freitas, amigo de Leonel Brizola e do ex-presidente João Goulart. No livro Palmares: A Guerra dos Escravos, Décio afirma ter encontrado cartas mostrando que o herói cresceu num convento de Alagoas, onde recebeu o nome de Francisco e aprendeu a falar latim e português. Aos 15 anos, Atendendo ao chamado do seu povo, teria partido para o quilombo. As cartas sobre a infância de Zumbi teriam sido enviadas pelo padre Antônio Melo, da vila alagoana de Porto Calvo, para um padre de Portugal, onde Décio as teria encontrado. Ele nunca mostrou as mensagens para os historiadores que insistiram em ver o material. A mesma suspeita recai sobre outro livro seu, O Maior Crime da Terra. O historiador Cláudio Pereira Elmir procurou por cinco anos algum vestígio dos registros policiais que Décio cita. Não encontrou nenhum. ”Tenho razões para acreditar que ele inventou as fontes e que pode ter feito o mesmo em outras obras”, disse-me Cláudio no fim de 2008. O nome de Francisco, pura cascata de Décio Freitas, consta até hoje no Livro dos Heróis da Pátria da Presidência da República.

Também se deve à historiografia marxista o fato de Zumbi ser muito mais importante hoje em dia do que Ganga Zumba, seu antecessor. Enquanto o primeiro ficou para a história como herói da resistência do quilombo, seu tio faz o papel de traidor. Essa fama se deve ao acordo de paz que fez com os portugueses em 1678. Ganga Zumba, recebido em Recife quase como chefe de Estado, prometeu ao governador de Pernambuco mudar o quilombo para um lugar mais distante e devolver os moradores que não tivessem nascido em Palmares. Em troca, os portugueses se comprometeriam a deixar de atacar o grupo. Os historiadores marxistas acharam a promessa de entregar os negros uma traição, que Zumbi teria se recusado a levar adiante. ”A ele [Zumbi] foram associados os valores da guerra, da coragem, do destemor e principalmente a postura de resistir continuamente às forças coloniais”, conta a historiadora Andressa dos Reis. ”Esta visão de Freitas foi a imagem do Quilombo e de Zumbi que se cristalizou nas décadas de 1980 e 1990.” Os poucos documentos do período não são o bastante para dizer que Zumbi agiu diferente de Ganga Zumba e foi mesmo contra o acordo de paz. Se foi, pode ter agido contra o próprio quilombo, provocando sua destruição. Acordos entre comunidades negras e os europeus eram comuns na América Latina - e nem sempre os quilombolas cumpriram a promessa de devolver escravos. No Suriname, o quilombo dos negros chamados saramacás respeitou o acordo de paz com os holandeses. Esse grupo, que o historiador Americano Richard Price considera a ”experiência mais extraordinária de quilombos no Novo Mundo”, conseguiu manter o povoado protegido dos ataques europeus. Tem hoje 5 mil habitantes.

Em 1685, na tentativa de fazer um acordo de paz com o quilombo, o rei de Portugal mandou uma mensagem carinhosa para Zumbi. Um trecho: ”Convido-vos a assistir em qualquer estância que vos convier, com vossa mulher e vossos filhos, e todos os vossos capitães, livres de qualquer cativeiro ou sujeição, como meus leais e fiéis súditos, sob minha real proteção”.

Hoje em dia relacionamos negros e escravos porque a escravidão africana foi a última. Essa relação tem uma história muito recente. Houve um tempo em que escravos lembravam brancos de olhos de azuis.

azuis.http://www.ebah.com.br/content/ABAAAgok4AJ/guia-politicamente-incorreto-historia-brasil-leandro-narloch?part=5

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