terça-feira, 16 de dezembro de 2014

O papel da liberdade no cálculo do Índice de Desenvolvimento Humano


“Se eu lhe perguntar: ‘Como está sua vida?’ Você vai me responder: ‘137’?” Foi assim que o indiano Amartya Sen, Prêmio Nobel de Economia de 1998, tentou explicar a mim e à repórter Camila Nóbrega, quando o entrevistamos para o “Razão Social”*, em abril de 2012, sua crítica ao Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) que ele próprio criara. Lembrei-me desse momento quando li, nesta terça-feira (25), notícia sobre o lançamento do Atlas do Desenvolvimento Humano nas Regiões Metropolitanas Brasileiras. Sen não pensou sozinho na criação do índice. Foi em conversa com o amigo paquistanês Mahbub ul Haq que ambos descobriram um incômodo comum com o Produto Interno Bruto (PIB), até então única medição do progresso econômico.

“Achamos que avaliar pela renda de um indivíduo pode ser um mau reflexo sobre a liberdade dele. Duas pessoas podem ter a mesma renda, mas se uma tem uma limitação e precisa de hemodiálise, por exemplo, a necessidade da renda é diferente”, disse ele.

E assim, logo nos primeiros minutos de nossa entrevista, ele nos presenteara com uma reflexão profunda sobre seus estudos e pronunciara a palavra que sempre norteou seu pensamento econômico: liberdade. Em “Desenvolvimento como liberdade”, livro que escreveu um ano depois de ser laureado (aqui no Brasil foi editado em 2009 pela Companhia das Letras), ele diz, claramente: “Para combater os problemas que enfrentamos hoje, temos de considerar a liberdade individual um comprometimento social. A expansão da liberdade é o principal fim e o principal meio para o desenvolvimento”.

Com esse pensamento, que expande tão bem em seu livro, o economista, de fato, não conseguia ver razão num único medidor econômico. Em conversa com o paquistanês, ambos concluíram que seria preciso uma abordagem maior de desenvolvimento humano, um novo índice onde entrassem a mortalidade, a educação, a sensação de segurança e insegurança dos indivíduos no mundo. Mas Amartya se deixou levar pela praticidade do amigo, que o convenceu a introduzir a renda e apenas esses aspectos para constituir a medição, alegando que dessa forma seria mais fácil de ser absorvido pelas pessoas em geral, pela mídia inclusive.

“Ficamos com longevidade, educação e renda per capita, mas eu poderia incluir pelo menos outros dez fatores. Mas conseguimos o que queríamos e saímos no “Le Monde”, “New York Times”, “The Guardian”, disse Amartya na entrevista.

A ideia, no fim das contas, era chamar a atenção para a reduzida aplicação do PIB. Amartya Sen e Mahbub ul Haq queriam que o assunto fosse discutido, que se pensasse numa outra forma de medir o progresso levando em conta também a qualidade de vida dos indivíduos.

“Mas não podemos ser ingênuos. Esse índice (o IDH) é uma forma muito bruta de se representar qualquer coisa. Há de se reconhecer que é incompleto”, disse ele.

Quando nos deu essa entrevista, Amartya Sen já estava trabalhando, junto com Joseph E. Stiglitz e Jean-Paul Fitoussi, a pedido do ex-presidente francês Nicholas Sarkozy, num outro medidor de riquezas que pudesse substituir o PIB. O relatório desse estudo, que se chamou “Comissão Sarkozy”, foi concluído em 2009 e no ano seguinte foi publicado em livro, “Mis-measuring our lives”, ainda sem tradução no Brasil (veja aqui).

Para os economistas e pesquisadores tradicionais, alinhados com o desenvolvimento do jeito que está posto, Amartya Sen e outros estudiosos incomodados com o PIB são pouco práticos. Para a linha de pensamento mais ortodoxa, o PIB como foi criado na década de 30, “um conjunto de bens e serviços produzidos em um país”, serve como uma bússola, da qual a humanidade não pode abrir mão tão cedo.

Mas o próprio Atlas divulgado ontem mostra que medir o desenvolvimento levando em conta só a renda dos indivíduos pode revelar alguma discordância até na hora de cruzar os resultados. Segundo os dados obtidos pelos pesquisadores do Ipea, do Pnud e da Fundação João Pinheiro, “embora São Paulo tenha a maior renda média mensal, Brasília ocupa o primeiro lugar no IDHM em padrão de vida porque o índice é medido pela soma da renda média de todos os moradores”.

Bem, mas toda essa história tem um final feliz. Talvez por reconhecer como apropriadas as instigantes reflexões de um dos criadores do IDH, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), segundo o texto que introduz a apresentação dos dados do Atlas, encoraja os países a desenharem seus próprios índices de desenvolvimento, adequando-os às suas necessidades. Aqui no Brasil isso é feito desde 1998, e são utilizados, além dos indicadores básicos propostos inicialmente pelos dois economistas – longevidade, educação e renda – mais tantos outros.

“O crescimento econômico de uma sociedade não se traduz automaticamente em qualidade de vida e, muitas vezes, o que se observa é o reforço das desigualdades. É preciso que este crescimento seja transformado em conquistas concretas para as pessoas: crianças mais saudáveis, educação universal e de qualidade, ampliação da participação política dos cidadãos, preservação ambiental, equilíbrio da renda e das oportunidades entre todas as pessoas, maior liberdade de expressão, entre outras. Assim, ao colocar as pessoas no centro da análise do bem estar, a abordagem do desenvolvimento humano redefine a maneira como pensamos sobre e lidamos com o desenvolvimento – internacional, nacional e localmente”, diz o texto que introduz o Atlas.

E o resultado geral da pesquisa, feita com base em dados dos Centros Demográficos do IBGE, retrata aquilo de que já sabemos. Do início do século para cá, houve uma melhora acentuada nos níveis de desenvolvimento humano da população. Mas a desigualdade continua, em níveis significativos. Infelizmente, não é muito diferente do cenário mundial.

E onde fica a liberdade, conceito tão estimado por Amartya Sen? Nas escolhas, na capacidade de escolher, afirmam os estudiosos que agruparam os dados para o Mapa. Se alguém não aprende a ler e a escrever, terá restritas condições de participar do sistema e será excluído. Se adoece e não recebe tratamento adequado, também ficará à margem. É disso que se trata. “Substituir o domínio das circunstâncias e do acaso sobre os indivíduos pelo domínio dos indivíduos sobre o acaso e as circunstâncias”, escreve o economista em seu livro, recapitulando pensamentos da obra de Karl Marx.

Há liberdades que não entraram no IDH, revelou-nos Amartya Sen durante a entrevista. O livro dele lista algumas: liberdade de participação política, de informação, de imprensa, liberdade do contrato de trabalho em oposição à escravidão ou à exclusão forçada do mercado de trabalho, liberdade de participar do intercâmbio econômico. Para captar essas liberdades, no entanto, não dá para nos concentrarmos tanto em índices e deixarmos de lado a relação com o outro, a comunicação entre as pessoas, afirma.

“Um índice é o antipensamento, a antipoesia”, disse o Prêmio Nobel de Economia.



* Suplemento sobre sustentabilidade que foi editado no jornal “O Globo” de 2003 a 2012.

http://g1.globo.com/natureza/blog/nova-etica-social/post/o-papel-da-liberdade-no-calculo-do-indice-de-desenvolvimento-humano.html

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