Artur Timerman fala sobre o novo livro 'Histórias da Aids', em que aborda as evoluções sociais e científicas ao longo de mais de três décadas da doença no país
O infectologista Artur Timerman sobre a aids: "As histórias com finais felizes também existem. São as mais frequentes agora". (Fabiano Accorsi/Dedoc)
Em 1981, o infectologista Artur Timerman, uma das maiores autoridades brasileiras no tratamento da aids, ouviu falar pela primeira vez sobre a doença. Uma revista publicada semanalmente pelo Centro para Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos, o CDC, relatava os primeiros casos graves de uma infecção desconhecida. Devido à falta de dados sobre o assunto e pelo medo de contágio, médicos e enfermeiros recusavam-se a atender os pacientes que chegavam aos hospitais - geralmente com sintomas avançados. Para se aproximar dos doentes, os profissionais de saúde eram orientados a se paramentar com dois aventais, luva, máscara, óculos e gorro. Não era necessário, mas pouco se sabia sobre as formas de transmissão da aids. Ainda assim, Timerman permanecia na linha de frente. "Ninguém estava preparado para lidar com aquele tipo de doença e nem com aquele tipo de paciente. Gente jovem escapando entre os dedos como água, morrendo por causa de um problema que ninguém sabia tratar", escreveu o médico no primeiro capítulo do livro Histórias da Aids (Editora Autêntica, 34 reais), realizado em parceria com a jornalista Naiara Magalhães.
Na obra, que será lançada na próxima terça-feira, 21, Timerman reúne relatos de oito pacientes que convivem com o HIV. Em entrevista ao site de VEJA, o infectologista, que já cuidou de mais de 1 000 portadores do vírus, aborda as evoluções sociais e científicas ao longo de mais de três décadas desde o surgimento da doença. "Há cinco anos, nos congressos mundiais sobre aids, ninguém ousava falar sobre cura. Hoje, todo congresso tem uma parcela significativa de médicos apresentando estratégias para erradicar o HIV".
Por que o senhor decidiu se especializar em pacientes com aids? Quando me formei, em 1976, eu queria me especializar em doença de Chagas, meu trabalho de conclusão de curso foi sobre isso. Mas, poucos anos depois, começaram a aparecer os primeiros pacientes com aids e alguém precisava cuidar deles. Alguns médicos se recusavam a atendê-los. Além disso, a falta de conhecimento sobre a doença deixava todos extremamente assustados. Era frustrante porque, para um médico recém-formado, tudo o que eu queria era tratar doentes e curar doenças, mas com a aids nada podia ser feito. A única coisa que nos restava era amenizar a dor e dar um apoio emocional.
Na década de 80, pouco se sabia sobre as formas de contágio pelo vírus HIV. Como eram os protocolos dos hospitais nesse período? Ninguém estava preparado para cuidar desses pacientes porque faltavam informações precisas. Por isso, havia muito medo de se contaminar com a saliva ou vômito, por exemplo. Para que um soropositivo fizesse uma endoscopia, era preciso praticamente implorar a médicos e técnicos. Havia resistência até em médicos de outras especialidades, que não estavam acostumados com a doença, como oncologistas e neurologistas. Naquele tempo, os profissionais de saúde precisavam se paramentar com dois aventais, luva, máscara, óculos e gorro. Os familiares eram autorizados a entrar no quarto para visitar o doente, mas tinham que se proteger o máximo possível. Nessa fase, eu assinava uma média de cinco atestados de óbito por dia -- mas houve um dia em que assinei 11.
Como era possível aprender sobre a doença? Já que não tínhamos aprendido nada sobre isso na faculdade, eu lia diariamente dezenas de estudos publicados ao redor do mundo sobre os casos relatados. Mas o melhor jeito de aprender sobre a doença era no dia a dia com os próprios pacientes. Aliás, o campo da imunologia era muito rudimentar até o aparecimento da aids. Foi com o HIV que a medicina começou a se aprofundar sobre os mecanismos da resposta imune.
Em três décadas desde o início epidemia, qual foi o momento mais marcante? Certamente foi no ano de 1996. Pela primeira vez, vimos que a combinação de três medicamentos não apenas prolongava a expectativa de vida do soropositivo, como também permitia que ele tivesse uma vida produtiva. Era possível controlar a infecção. Dessa forma, o paciente não iria apenas sobreviver, mas finalmente poderia ter um tempo de vida igual ao de uma pessoa sem HIV. Quando me dei conta disso, fiquei verdadeiramente emocionado porque percebi que o jogo iria mudar. Agora era possível contra-atacar. Até então, estávamos apanhando de todos os lados e não sabíamos para onde ir.
De acordo com os dados do Ministério da Saúde, as infecções pelo HIV entre rapazes e moças de 15 a 24 anos cresceu 25% entre 2003 e 2012. Por que isso está acontecendo? Infelizmente, hoje, os jovens compõe um grupo de risco preocupante. Eles não viveram aquele período de medo no passado, quando não havia tratamento e a aids era uma sentença de morte. Por isso, se cuidam bem menos. Isso é assustador porque mostra que a epidemia pode continuar a crescer. Eles saem para festas, ingerem bebidas alcoólicas, perdem completamente o medo de manter relações sexuais sem preservativo. O mais preocupante é que a maioria deles sabe como se contrai o vírus, mas ainda assim não muda o comportamento.
Ao longo de sua carreira, o senhor já tratou cerca de 1 500 pacientes, em todas as fases de evolução científica do HIV. Há alguma história que marcou mais o senhor? Todas elas marcaram muito. Conheci pessoas que se mataram após o diagnóstico. Tratei de onze colegas de faculdade soropositivos e os vi morrerem. Já chorei muito com meus pacientes, mas também pude compartilhar a alegria com aqueles que sobreviveram e que hoje podem contar suas histórias. Para mim, eles são os heróis da resistência. São esses relatos que estão no livro e que eu espero que possam mostrar a outros soropositivos que é possível ser infectado e ter uma vida plena em todos os aspectos, do trabalho à vida amorosa. Já acompanhei o parto de mais de 100 pacientes soropositivas, que tiveram o bebê sem infecção. As histórias com finais felizes também existem. São as mais frequentes agora.
Na semana passada, um relatório divulgado pela Organização das Nações Unidas apontou que o mundo conseguiu frear e começar a reverter a incidência de aids. O senhor acredita que a cura da doença é possível? Sim. Creio muito na ciência a acho que estamos chegando lá. Há cinco anos, nos congressos mundiais sobre aids, ninguém ousava falar sobre cura. Hoje, todo congresso tem uma parcela significativa de médicos apresentando estratégias para erradicar o HIV. Mas, evidentemente, é importante que as pessoas sejam diagnosticadas cedo para serem tratadas. Esse é o primeiro passo para evitar a disseminação da infecção e garantir a erradicação da doença.
http://veja.abril.com.br/noticia/saude/a-historia-da-aids
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