O Estatuto das Raças e o Caboclo - A Realidade na Amazônia
O Estatuto da Igualdade Racial demonstra, mais uma vez, o desapreço do governo central para com a Amazônia. É certo que o desconhecimento da região (seria demais acreditar em má-fé) não é privilégio dos governantes, os aclamados intelectuais brasileiros sempre cometeram e cometem equívocos quando fazem alguma abordagem sobre a Amazônia.
Mário de Andrade é marcante (expoente do movimento modernista da década de 20, do século XX, que via a mestiçagem no Brasil a grande virtude da nação brasileira) em Macunaíma (com acento, como escrevem os hermanos de Venezuela, em tradução da pesquisa do etnógrafo alemão Theodor Koch-Grünberg, de 1910, que registrou a lenda da entidade dos índios karib em “Do Orinoco ao Roraima”), quando em Roraima diz-se Macunaima (sem acento, da mesma forma sonora de Sorocaima, Pacaraima, ... Roraima ); não foi diferente Darcy Ribeiro em seu “O povo brasileiro – formação e sentido de Brasil” (1995), quando faz menção aos amazônidas; o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, na década de 50, do século passado, em seu “Cor e mobilidade racial em Florianópolis” (1960) e outros estudiosos começaram a construir o entendimento geral com dados específicos que negro é todo aquele que não é branco, abstraindo totalmente a população amazônica.
Recentemente o doblê de cientista social e jornalista Ali Kamel em seu “Não somos racistas: uma reação aos que querem nos transformar numa nação bicolor” (2006) poderia ter enriquecido seus escritos e, certamente, ampliado seus argumentos, se conhecesse a história da Amazônia e seus habitantes mais legítimos – o caboclo. Os caboclos que, como descendentes indígenas, desenvolveram as suas matrizes e os seus valores, a partir do íntimo contato com o ambiente físico e biológico (Samuel Benchimol, Amazônia – formação social e cultural, 1999).
Ora, falar de branco e/ou negro na Amazônia não encontra grande eco, considerando–se a população essencialmente mestiça, apesar do genocídio na fase final da Cabanagem (1835–1840) determinando pelo poder central (Pasquale Di Paolo, Cabanagem: a revolução popular da Amazônia, 1990). Mestiço que na Amazônia é chamado de caboclo.
Antes dos brancos portugueses chegarem à Amazônia, em 1616, espanhóis, franceses, ingleses, holandeses e irlandeses já haviam marcado presença na região. Vieram depois os italianos, os turcos, os sírios e os libaneses, os judeus. Os orientais (amarelos) chegaram a partir de 1928, com a colonização japonesa iniciada pelo Pará. Os negros (africanos) foram trazidos à Amazônia em cifras bem modestas, desde 1702, conforme nos revela Vicente Sales (O negro no Pará – sob o regime da escravidão, 1988), com maior concentração em Belém do Pará, menos na Capitania do Rio Negro (atual Estado do Amazonas) e em Macapá, nenhum no vale do rio Branco (atual Estado de Roraima), mas alguns fugitivos das fazendas e outros vindos do Maranhão e Pernambuco formaram mocambos em Marajó, Macapá, Mocajuba, Gurupi, Tocantins e Trombetas.
Inicialmente indígena, a Amazônia foi se tornando cabocla, em decorrência do contato do nativo com os migrantes colonos, militares, missionários e pesquisadores, sedimentando o processo de miscigenação biológica e cultural. Certamente, a miscigenação na Amazônia não é homogênea, como fato social que é; por um lado, pelos centros mais urbanos concentrarem maior contingente de migrantes, por outro, pelo contato entre os próprios mestiços (mameluco, mulato, cafuzo) originando o mestiço do mestiço, este, dominante na região atualmente.
A leva de migrantes nordestinos durante o ciclo da borracha (1875-1912), para enriquecimento fácil, e, durante a 2ª grande guerra (1941-1945), como soldados da borracha, trouxe o elemento brasileiro para Amazônia, com sua cobiça e o desconhecimento da região (eram chamados de “brabos” pelos caboclos, pela forma predatória em sua relação com o ambiente natural). Legado significativo dos nordestinos na Amazônia é a ocupação do Acre (Tratado de Petrópolis, em 1903). Desta forma, do contato do mestiço nordestino com o mestiço amazônida (muitas vezes com os nativos) nasceu novo mestiço na região, também, caboclo, o caboclo do centrão, longe da beira dos rios (igarapés, furos, paranás, lagos e lagoas). Nem inferior nem superior, mas caboclo, como acentuou André Vidal de Araújo (Introdução à sociologia da Amazônia, 1956).
Enfim, o caboclo não é índio (pré-colombiano); o caboclo não é branco (europeu); o caboclo não é negro (africano); o caboclo não é amarelo (asiático); ... o caboclo é um mestiço. O caboclo é o amazônida.
Fonte: www.amazonia.org.br
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