Há dez anos, a comerciante Telma, que não quer ter seu sobrenome divulgado, foi diagnosticada com tricoleucemia na medula óssea. Com o tratamento de quimioterapia, o volume do tumor foi reduzido após alguns meses. No final de 2013, o câncer, no entanto, voltou.
Contra a orientação médica, ela cancelou o tratamento tradicional e iniciou o consumo das cápsulas. De acordo com ela, a terapia alternativa rendeu resultados positivos já nos quatro primeiros meses.
“Hoje, com 49 anos, eu me sinto ótima. A resposta que eu tive com a fosfo foi muito melhor do que o resultado da quimio – mesmo nove anos mais velha”, diz em entrevista à EXAME.com.
O problema é que a cápsula azul e branca, como a fosfoetonolamina também é conhecida, nunca passou por testes clínicos ou toxicológicos com humanos. Isso significa que a distribuição da substância é feita sem autorização.
Mesmo assim, a droga foi distribuída gratuitamente durante 20 anos pelo hoje professor aposentado Gilberto Orivaldo Chierice, precursor das pesquisas com a substância no Brasil. Na época, ele era chefe do Instituto de Química de São Carlos (IQSC) da USP de São Carlos, no interior de São Paulo.
Em 2014, o instituto proibiu a produção e distribuição de substâncias médicas e sanitárias que não possuíssem registro, seguindo uma regulamentação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
A droga, no entanto, só deixou de ser distribuída na universidade no final de setembro, após veto do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP).
Contudo, no início deste mês, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou em favor de uma pessoa que solicitou judicialmente o consumo da droga.
Baseado nessa decisão, o TJ-SP voltou atrás e liberou a fosfo para cerca de 800 pacientes - para quem a USP enviou a substância pelo correio. Nos últimos dias, segundo informações do jornal O Estado de S. Paulo, a universidade chegou a receber, por dia, até 50 pedidos com liminares.
A Defensoria Pública da União, em ação civil protocolada na semana passada, defende que o fornecimento da substância seja liberado aos pacientes que já passaram por todos os tratamentos possíveis, sem resultados positivos.
"Existe aqui um conflito de direitos fundamentais. De um lado existe a necessidade de avançar com os testes clínicos e conseguir a autorização da Anvisa e, do outro, o direito a vida e saúde dos pacientes que tentaram todos os caminhos possíveis que a medicina oferece", afirma Daniel Macedo, defensor público responsável pelo caso. "A Defensoria não pode ignorar centenas de relatos baseados em pesquisa científica e prescrições assinadas".
Segundo Jan Carlo Delorenzi, farmacêutico responsável pelo Laboratório de Farmacologia da Universidade Mackenzie, a molécula produzida por Chierice é um lipídio (uma espécie de gordura) semelhante ao que encontramos nas próprias células de um organismo humano.
Na teoria, quando o paciente ingere doses suplementares de fosfo, o sistema imunológico detectaria a presença da célula cancerosa e iniciaria o processo de morte celular. Dessa forma, o próprio organismo é quem combateria o câncer. No entanto, até o momento, não há nenhuma pesquisa clínica que comprove a hipótese.
O que falta para a substância ser liberada?
Para que um produto possa circular no mercado brasileiro, a Anvisa precisa comprovar sua eficácia e riscos para a saúde.
Veja quais são as etapas.
Delorenzi, do Mackenzie, estima que só a pesquisa clínica para medicamentos usados no combate ao câncer (primeira etapa do processo) pode chegar ao custo de 2 milhões de reais.
“Em um estudo como esse é preciso fazer seguro de vida para as pessoas que se submetem aos testes, pagar o médico, os exames e até a internação se o paciente estiver se tratando com quimioterapia”, diz. “Sem dúvida é necessário que haja um financiador”.
Até agora, contudo, os testes com a fosfoetonolamina, realizados por Chierice, se restringiram a camundongos. De acordo com estudos do professor aposentado da USP, os animais que receberam a substância apresentaram uma redução do tamanho do tumor.
“O comportamento do animal é muito diferente do comportamento humano. Se o grupo de pesquisadores da USP fizesse esse teste, aí sim haveria algum indício de segurança para ingestão do produto”, afirma Delorenzi.
Dessa forma, segundo o professor do Mackenzie, a substância não deveria ser ingerida por humanos. “É preciso um mínimo de segurança que os dados apresentados nos estudos do professor Gilberto ainda não garantem", diz. “Do jeito que está sendo feito, não é possível saber nem se há vestígios de detergente, por exemplo”.
Por que a substância não foi aprovada até agora?
O pesquisador aposentado da USP de São Carlos alega que procurou a Anvisa quatro vezes e, em todas, foi informado que faltavam os testes clínicos.
Chierice conta que chegou a procurar hospitais públicos para realizar os procedimentos – mas não obteve retorno.
Na última quinta-feira (22), deputados estaduais de São Paulo protocolaram um pedido para a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar a demora do Estado em realizar testes com a substância.
A Anvisa diz que a USP corre o risco de sofrer graves sanções caso passe a fabricar e distribuir as pílulas. De acordo com a agência, o ato pode ser considerado ilegal, já que a substância não passou por testes clínicos em humanos.
Enquanto isso, nas redes sociais...
Os relatos de resultados milagrosos após o uso da substância pipocam nas redes sociais. Só no Facebook, EXAME.com mapeou ao menos 8 grupos que defendem a liberação da cápsula.
No caso de Telma, descrito no início dessa reportagem, a evolução do quadro clínico da paciente exposto nos laudos é evidente. Os exames foram enviados por ela à reportagem.
No entanto, segundo Adgmar Andriolo, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Patologia Clínica/Medicina Laboratorial (SBPC/ML), são necessários outros procedimentos para determinar se houve cura, ou não, da doença.
Em nota, a Universidade de São Paulo (USP) alerta os pacientes sobre oportunistas que pregam fórmulas milagreiras:
“É compreensível a angústia de pacientes e familiares acometidos de doença grave”, afirma a nota. “Nessas situações, não é incomum o recurso a fórmulas mágicas, poções milagrosas ou abordagens inertes. Nessas condições, pacientes e seus familiares aflitos se convertem em alvo fácil de exploradores oportunistas”.
Telma foi tratada por Carlos Kennedy Witthoeft, que não é médico ou químico, mas fabricava a fosfoetonolamina. Em junho, ele foi preso por falsificar o produto e, hoje, segue em liberdade provisória.
Fonte: Exame.com