O ano era 2005 e o economista indiano C.K. Prahalad tinha acabado de lançar seu livro “The Fortune at the Bottom of the Pyramid” (“A fortuna no pé da pirâmide”, em tradução literal), que andava provocando burburinho no mundo financeiro. A teoria de Prahalad era bem clara: se o mundo tem mais pobres do que ricos, então está na hora de os empresários aprenderem a fazer fortuna com aqueles que não têm muito para pagar. E, ao mesmo tempo, ajudá-los a comprar coisas. Naquela época, havia 4 bilhões de pessoas ganhando menos de US$ 2 por dia e a população mundial era de cerca de 6,5 bilhões*.
Além de explicar melhor sua teoria, que recebeu críticas por apostar no consumo para ajudar a subir degraus socialmente, o economista indiano relatou casos de empresas, por todo o mundo, que alimentaram seu negócio considerando o pé da pirâmide. Mais de vinte páginas da edição norte-americana do livro de Prahalad são dedicadas às Casas Bahia. Assim que li, em 2005, procurei entrevistar Samuel Klein (foto acima), o dono da empresa. Nesse período, eu editava o caderno Razão Social, suplemento do jornal “O Globo”. Em parceria com o Instituto Ethos, nosso foco era a responsabilidade social das corporações.
Uma entrevista dessas não se faz pelo telefone. Peguei o avião, fui para São Paulo, de lá para São Caetano, onde ficava o escritório da empresa. Samuel tinha na época 82 anos, e o filho Michel, dirigente do negócio, disse que seu pai não estava, naquele dia, com disposição para dar entrevista. A conversa foi com Michel. Mas eu me lembro bem que, de vez em quando, Samuel nos olhava por uma porta entreaberta no escritório sobriamente decorado. Era o olho do dono tomando conta de seu negócio.
Toda a cena se passou ontem pela minha cabeça, quando li sobre a morte de Samuel Klein, aos 91 anos (veja aqui). Polonês e judeu, ele conseguiu fugir de um campo de concentração, emigrou para a Bolívia, de lá para o Brasil. Sempre foi reativo a expor sua história de vida até que, em 2003, decidiu contar tudo para o jornalista Elias Awad, que escreveu o livro “Uma trajetória de sucesso”. Como empresário, Klein apostava que sua responsabilidade social era apoiar instituições de caridade, vender mais barato, dar crédito aos mais pobres.
“Nós não achamos que tem que ficar tudo nas costas do governo, que só ele pode dar soluções. Além de vender para o pessoal que não tem acesso, as Casas Bahia sempre têm colaborado com instituições de caridade. Não sei se é certo ou errado, mas não damos dinheiro: damos o leite, o fogão, a geladeira... Outra coisa: perdoamos o crédito de quem sofre algum tipo de desastre na vida. E em 52 anos nunca protestamos ninguém em cartório. A gente acha que se a pessoa não tem como pagar porque está temporariamente sem fonte de renda merece que tenha o carnê guardado. Quando puder, ela vem e paga. E isso acontece, a gente negocia até os juros. Às vezes, a pessoa vem aqui e pede para não mandar aviso de cobrança para os vizinhos não verem”, disse-me Michel Klein na entrevista que foi publicada em abril de 2005.
Dois anos depois, o relatório do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima, na versão em inglês) trouxe a notícia que mudou muita coisa também no setor de negócios. O fato comprovado de que as atividades humanas, sobretudo da indústria, colaboram para as mudanças climáticas, aqueceu o mundo corporativo e o marketing passou a preferir a expressão “empresas sustentáveis” no lugar de “responsabilidade social corporativa”. Não sei como Samuel Klein via esse movimento, também não saberemos se Prahalad, que faleceu em 2011, pensou em incluir questões ambientais ao seu estudo.
Seja como for, o fato é que a sociedade civil tem incorporado, lentamente, como é costume nas mudanças culturais, o pensamento de que é necessário cobrar das empresas uma atitude responsável. Social ou ambientalmente, não dá mais para um empresário enfiar a cabeça na areia e fazer seu negócio como se dele só se esperasse gerar emprego e pagar impostos, cumprindo a lei. Aqui no Brasil, esse movimento começou no fim do século passado, mas o primeiro relatório social feito por uma empresa no mundo é da década de 70**.
Corrupção nas empresas
A notícia da morte de Samuel Klein, empresário que entendia a seu modo o que significa ser responsável, dividiu espaço na mídia com a operação da Polícia Federal que está desmontando uma rede de empresas envolvidas em corrupção, lavagem de dinheiro e evasão de divisas (envio ilegal de dinheiro para o exterior). É caso de polícia mesmo, e não podemos julgar antes que a Justiça o faça. Mas uma declaração de um dos presos feriu minha inteligência e me fez refletir. Confesso que não sem um grau de irritação.
O executivo disse em depoimento (veja aqui) que algumas das principais construtoras do país formaram uma espécie de clube para dividir, entre si, a execução de obras, pagando propina ao diretor da Petrobras. Se não fizessem isso, perderiam os contratos. Ora, falando francamente: empresas do escalão das que estão envolvidas podem ainda se sentir reféns dentro de um esquema de corrupção? Não usariam seu poder para vir a público denunciar a tramoia antes de se fazerem cúmplices? Ou se sentem tão impunes aqui no Brasil (veja bem, duvido que façam algo parecido em outro país) a ponto de fortalecerem a corrupção por baixo dos panos enquanto, na superfície, algumas até façam publicidade de sua “gestão sustentável”? (É só visitar os sites das empresas envolvidas no escândalo para ver que quase todos têm o nicho “Sustentabilidade”).
Está mais do que na hora de rever essa estrutura, é claro. Nesse sentido, li com prazer a reportagem desta sexta-feira (21) na página A6 do “Valor Econômico”, sugerindo que o país facilite atuação de mais empreiteiras caso essas grandes virem inidôneas.
Apoio, faço coro e digo mais: por que não se faz isso logo? A concentração das obras nas mãos das mesmas empreiteiras, se possibilitou esse esquema de corrupção, pode ser revista. A reportagem de Fábio Pupo diz que há mais de dez empresas de engenharia e construção “que atualmente não constam como alvo das investigações e que têm receita líquida superior a R$ 1 bilhão no Brasil”. A incerteza é quanto ao fato de essas companhias conseguirem cumprir todas as exigências do governo, sobretudo porque não teriam disponibilidade de caixa (o desembolso é feito à medida que as obras são entregues). Mas, que tal pensar em mudar essas regras, para absorver também os empresários menores? Onde fica, nessa hora, o conceito teórico sobre a sustentabilidade que diz que “menos é mais”?
As crises só valem a pena se resultarem em mudanças. O Brasil, internacionalmente conhecido como um país que possibilitou que milhões de pessoas saíssem da miséria absoluta e hoje tenham chance de ter um carnê das lojas de Samuel Klein, precisa agora provocar ainda mais. Não faz sentido se manter refém de empresas que praticam a máxima “mudar para continuar o mesmo”.
* Essa é a medida da linha de pobreza, enquanto a da indigência, segundo o Banco Mundial, é de menos de US$ 1 por dia). De qualquer maneira, hoje esse quadro mudou e há 1,3 bilhão vivendo com menos de US$ 1 por dia.
** Há estudos que dizem que o primeiro balanço social foi publicado na França em 1972 pela Singer.
Foto: Divulgação
http://g1.globo.com/natureza/blog/nova-etica-social/post/reflexoes-sobre-responsabilidade-social-das-empresas-acusadas-de-corrupcao.html
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